Meu primeiro contato com Amanhã. Com Sorvete! se deu na oficina de contos ministrada pela autora. Recebi a cópia de um dos 37 contos que compõem o volume, editado pela 7Letras e lançado em julho deste ano. Capa linda – uma colagem que, de tão orgânica, parece simples –, criada por Marcos Beccari, designer que mora em Curitiba e está a um grau de separação. A capa junto com o sorvete do título ainda causará danos a alguns dos exemplares: marcas de dentes dos leitores mais impulsivos.

A epígrafe do livro é o mantra de uma cena divertidíssima do filme Down by Law, de Jim Jarmusch. Falo somente da cena, porque não vi o filme. Um amigo que considero possuir um bom gosto – chamemo-lo M. – já viu mais do que 4 vezes. Caso você não esteja a fim de vê-la, a frase é I scream, you scream, we all scream for ice cream.

O que espero normalmente de um volume de contos é que possuam alguma temática em comum. Nesse sentido, Amanhã. Com sorvete! quebrou minha expectativa: o fio condutor entre os textos (necessário para que um livro desse gênero não atire para tudo quanto é lado) se dá pela linguagem. Em sua maioria, frases concisas e que necessitam duma análise mais detida para se desdobrar em sentidos. Em outras palavras: não é um livro pra se ler correndo. Ou ouvindo Hot Chip ao mesmo tempo.

Quando já estava quase no final dele, me veio à cabeça um modo de explicar a sensação de lê-lo: igual à de ler cartas (ou e-mails, vá lá) dum casal de namorados. Às vezes me sentia como um dos polos da relação, às vezes como um amigo do casal e outras como alguém que no máximo viu alguns filmes em comum com os dois: o nível de entendimento das referências e do que está sendo dito depende muito da proximidade.

Deu pra sacar? Não falo que pra entender a obra você deve ser próximo à autora – até porque fui aluno dela e há coisas que não entendi. Falo que o livro foi projetado para um certo tipo de leitor, que se preocupa um pouco mais com a forma de se contar uma história do que com o enredo propriamente dito, por exemplo.

Por falar em enredo, as narrativas que preferi foram as em que ele está mais claro. Posso citar algumas: “Verossímil” – uma mentira em crescendo; “Amoras Frescas” – Mary Jane é tão real, estranha e adorável, que pedi pra Assionara dar meu número pra ela; “Três Takes” – multifacetado, cinemático, tem uma de suas partes transcrita na quarta capa do livro, com razão; “Iluminura” – Em noites assim, apaga as luzes do quarto e vai à janela surpreender os gritos vermelhos das rosas despertadas em pânico pelo romper dos relâmpagos(!); “Brinquedo” – seus três últimos parágrafos são insanos; e “The End” – a perfeita forma de terminar o livro (pensei em escrever apenas perfeito, mas vai que ela mexe ainda nele, na segunda edição: onde eu enfio a cara?).

Creio que “Mímica” seja o conto que mais simboliza a relação do leitor comum minha relação (pretensão demais achar que esta opinião seria alguma espécie de unanimidade) com Amanhã. Com sorvete!. Sobre um mímico que se apresenta para uma plateia de cegos: esta presencia uma performance distinta das feitas especificamente para ela; e aquele busca métodos não-óbvios para atingir espectadores impossibilitados de apreciar o que ele faz corriqueiramente. Um impasse.

Este é um livro que leitores como eu devem ler mais do que uma vez. Pois, por mais que a mímica tenha se esforçado, tenho certeza que há várias coisas que restaram invisíveis na primeira leitura.

Você pode ler quatro contos, incluindo “Mímica”, no PDF disponibilizado pela 7Letras no site da Livraria Cultura. É só clicar aqui. No blog da autora, há ilustrações de Adriano Moraes para o referido conto. É só clicar aqui.