Caetano Waldrigues Galindo é professor de linguística e tradução no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná e é responsável pela nova tradução da obra Ulysses de James Joyce que será lançado em 2012 pela Penguin-Companhia das Letras. Quando o Ulysses for publicado, dependendo do jeito de contar, será algo como o 15o-20o livro de outras pessoas que ele já escreveu. Caetano topou responder às 10 perguntas e meia!


1) Como e quando surgiu seu interesse pela obra de James Joyce?

Eu não lembro por que, mas quando a minha filha estava pra nascer (1997) eu encasquetei que ia terminar o Ulysses (eu tinha sempre a curiosidade, mas a primeira frase do Houaiss me desanimava: aí acho que naquela época eu pensei que o meu inglês já estava bom). Todo leitor curioso sente essa atração pelo “mito” Joyce e eu não era exceção. Claro que eu não fazia ideia da dimensão que isso ia tomar na minha vida, em todos os sentidos.

 

2) Que livros você recomendaria do autor para despertar o interesse na obra dele?

O melhor mesmo é começar pela ordem. Dublinenses é um livro genial, que pode ser lido por qualquer leitor de ficção de qualidade. Um Retrato do Artista Quando Jovem já é um livro tecnicamente mais original, mais sofisticado, mas ainda enfrentável sem grandes esforços e aparatos. E sempre vale muito a pena lembrar que esses dois livros “menores” do Joyce já teriam bastado pra fazer a reputação dele como um escritor fundamental. Aí, feito isso, já com uma certa familiaridade com o estilo e mesmo com certos personagens (uma parcela imensa do elenco de Dublinenses, além, claro, de Stephen Dedalus, do Retrato, ressurge no Ulysses), é encarar o Ulysses. Já o Finnegans Wake é uma questão bem outra. Tem que rolar um projeto pessoal mesmo. De ler coisas em torno, de tirar um tempo pra aprender a ler o livro.

3) Existem três traduções de Ulysses para o português, uma por Antônio Houaiss, uma de Palma-Ferreira e outra por Bernardina da Silveira Pinheiro. Qual das três se assemelha mais com a sua ou você tomou todo o trabalho do zero?

Não parti de nenhuma delas. Quando eu comecei a minha eu tinha lido meia página do Houaiss, e a da Bernardina não existia. No meio do caminho decidi ler o Houaiss, mas parei antes da metade. A tradução da Bernardina eu só fui ler inteira no ano passado, com os alunos da graduação. E nunca li o Palma-Ferreira, como qualquer brasileiro, sinto que o português lusitano escrito é uma língua meio estrangeira demais pra eu poder julgar de acertos e erros de tradução.

4) A sua tradução de Ulysses está pronta há alguns anos. Por que o lançamento foi acontecer só agora?

A tradução foi concluída em 2004. De início a ideia era tentar um lançamento depois de 2006 (ela fazia parte da minha tese de doutorado, e eu só queria lançar depois da defesa), mas no meio do caminho saiu a tradução Bernardina, e o interesse por uma terceira meio que murchou. A solução passou a ser esperar um tempo, o que incluiria o prazo da entrada da obra do Joyce em domínio público. Nesse meio tempo eu cheguei a conversar com algumas editoras, e cheguei bem perto de fechar um acordo com a Ateliê, que teria sido um “lar” maravilhoso pro Ulysses. Mas aí eu comecei a fazer livros pra Companhia das Letras, e a trabalhar lá com o André Conti, um leitor apaixonado e muito sólido de Joyce. E o convite acabou aparecendo, fechamos os detalhes ao longo de quase dois anos de conversas, e pudemos divulgar a notícia agora no começo do ano. Levando tudo em conta, um destino mais que feliz. Contar com a edição do André, a coordenação editorial do Paulo Henriques Britto (o melhor tradutor do Brasil), e o selo Penguin na capa é melhor que qualquer encomenda!

5) Samuel Beckett costuma ser encarado, de certa forma, como herdeiro literário de Joyce. Além do óbvio da relação entre os dois e da grandiosidade da obra de Joyce, como você enxerga essa relação?

Cum grano salis. Ao mesmo tempo em que é fácil enxergar as proximidades e os legados que a obra e a figura do Joyce deixaram no Beckett, a questão é que são dois espíritos, e duas produções, diametralmente opostas, lidando de certas formas com temas semelhantes. Numa entrevista já décadas depois da morte do Joyce, Beckett, disse que a diferença entre eles é que Joyce trabalhava por acréscimo e ele, por eliminação. São duas visadas fundamentalmente diferentes, de mundo e de arte.

6) O regionalismo irlandês e a urbanidade são aspectos que influenciam o texto em Joyce (sendo que o último contribuiu no aspecto revolucionário da obra). No Brasil contamos com um paralelo literário: Guimarães Rosa e Grande Sertão: Veredas, onde vemos um fidedigno retrato da variação regionalística brasileira e o sertanismo linguístico. O senhor poderia falar um pouco sobre como foi verter tais regionalismos do Ulisses e se os mesmos tenderam para uma realidade irlandesa (nitidizando mais a Dublin do livro) ou a uma realidade mais brasileira como a de Guimarães (reforçando o aspecto universal do livro) ?

Senhor não, né? Pelamor…. De resto, nem vou começar a falar da relação Joyce-Rosa, que é um assunto cabeludo pacas. A questão no entanto dos “regionalismos” dublinenses é super complicada. Eu sei que você está falando de marcas linguísticas, e já chego lá, mas a questão é até mais ampla. O Ulysses (seguindo a premissa básica de um realismo detalhista e abrangente) está cheio de alusões, comentários e citações a todo um mundo cultural, político, histórico, que no limite só faz sentido pleno, direto e imediato pra um dublinense do começo do século. Que reconhece os pedaços de músicas que passam pela cabeça de Bloom, as figuras folclóricas pinçadas do cotidiano da cidade (os loucos de praça e de bar), as lendas urbanas e os mitos históricos dublinenses. Como “traduzir” isso tudo? Durante um tempo eu lidei com a ideia de traduzir mesmo, de escrever um Ulysses curitibano, com referências brasileiras de 2004 (na esteira do que fez um colega, Maurício Cardozo, com uma novela [O Centauro Bronco] alemã que ele ambientou no sertão brasileiro). Mas com meios e ferramentas mais normais, é recorrer a notas aqui-ali e fazer as pazes com o fato de que mesmo, digamos, um nova-iorquino de hoje tem dificuldades com esse mundo irlandês do Joyce. Quanto à língua, não há como manter um “dublinismo” em português. Nem mesmo um esterótipo da fala irlandesa a gente tem. Daí eu ter inventado uma fala que tem certas marcas idiossincráticas, mas sem nada de específico (certos “sulismos” entram muito de leve, assim como certos termos mais antigos, mas a gente está cuidando disso na revisão, eu e o Britto. Outro aspecto (com as desculpas pela resposta enorme) é a invenção. E aí a solução é subir no banquinho e inventar com a mesma coragem, com os precedentes de que a gente dispõe (o Rosa, o Souzândrade etc..) e às vezes sem padrinho mesmo…

7) Por que existe uma aversão ou cuidado de jovens leitores com autores consagrados – e muitas vezes considerados dificeis – como o próprio Joyce, Dostoiévski, Beckett, etc? São leituras realmente complicadas ou elas receberam esse título por tornarem-se clássicos?

Totem e tabu, né? Eles têm uma mística que atrai e assusta. O que me interessa mais no entanto é o quanto os motivos que nos atraem a esses livros, digamos, aos 20 anos de idade, não são os que nos mantêm ligados a eles aos 40. E, outra, eles são difíceis mesmo. Alguém que consiga uma leitura muito proveitosa do Finnegans Wake aos 20 anos de idade (por conta própria) tem de ser um prodígio de repertório cultural…. acréscimo, Joyce trabalhava por soma. E com o tempo a gente ganha mais estofo e perde certos medos…

8 ) Você traduziu o último livro de Thomas Pynchon (Vício Inerente), considerado um dos grandes autores ainda vivo nos EUA junto com Philip Roth e Cormac McCarthy. Quais autores, vivos, você considera imperdíveis para os leitores (nacionais e estrangeiros)?

Primeiro eu queria citar David Foster Wallace, que se matou em 2008, mas é o maior autor de toda uma geração. Fora isso: aqui? O duo dinâmico de Galera e Pellizzari já fez bastante e ainda há de fazer muito. André Sant’Anna é capaz de ser totalmente genial. Cristovão Tezza está numa fase que é de dar inveja. E certamente um monte de gente que eu não lembro ou não li. Fora daqui.. tem os grandões, como o Pynchon, mas tem um povo mais novo. Gostei muito de ler David Mitchell. O primeiro livro do Safra Foer é uma coisa deslumbrante. A Nicole Krauss é muito sólida. Ali Smith, que eu também traduzi, é de uma originalidade rara de se ver… bastante coisa, hoje..

9) O que mais te surpreendeu ao traduzir O Diário do Beagle de Charles Darwin?

Ver o Brasil tão fundamentalmente igual a hoje (corrupção, ineficiência….). Ver o quanto o homem mais genial do seu tempo podia ser tão categoricamente um homem de seu tempo (na admiração pasmada pelo belicismo inglês, por exemplo…). Ver as descrições de um europeu topando com a exuberância do mundo tropical, imaginar o quanto um abacaxi devia parecer alienígena pra eles…

10) Como vê a questão do plágio de traduções no Brasil? Por que o leitor comum deve se informar sobre isso?

É baixo. É feio. É sujo. É crime. Todo leitor devia se informar sobre o assunto, assim como prestar atenção na questão da tradução em geral. Guardar o nome daquele cara que te agradou, e do que não te agradou. Quando você lê um livro traduzido está lendo um livro que foi escrito pelo tradutor. Ele pode ser uma garantia de qualidade tão boa quanto certos autores…

10 1/2: Bakunin ou Bakhtin?

Bakhtin. Mas tive meus momentos anarquia-é-ordem na adolescência… engraçado vocês fazerem bem essa pergunta…