Lembro que após ler Cem anos de solidão, reli o prefácio – que não dei atenção na primeira lida– e encontrei algo interessante frisado por Rinaldo Gama ao falar sobre uma citação de Gabriel García Márquez. De acordo com Gama, o autor colombiano dizia que todo grande escritor está sempre escrevendo o mesmo livro. Esse anedota sussurrava aos meus ouvidos a cada livro que eu lia de Roberto Bolaño e ao ler O Terceiro Reich, livro escritor em 1989 mas publicado postumamente e lançado pela Companhia das Letras em Janeiro de 2011, conclui que o escritor chileno realmente escreve sobre os mesmo temas (literatura, política, poesia, guerra) – e é fácil de notar que muitos dos seus livros são continuações ou capítulos “perdidos” de outros ((como exemplificou Antônio Xerxenesky nesse guia)).

Em O Terceiro Reich seguimos o diário (com tom jornalístico) de Udo Berger, alemão de 25 anos viciado em jogos de guerra, que está de férias num vilarejo próximo à Barcelona acompanhado de sua nova namorada Ingeborg (não você não está louco, esse nome também figura por 2666). Através desse diário conhecemos as intenções de Udo de publicar novos trabalhos sobre os jogos de guerra, incluindo O Terceiro Reich, e aperfeiçoar sua escrita – que é motivada pelo seu melhor amigo Conrad. Todavia, durante grande parte da viagem o alemão é seduzido pela vida noturna, pelos jantares, pelas praias e pelos novos amigos que Ingeborg faz. Dessas novas amizades surgem os espanhóis Cordeiro e Lobo e o misterioso Queimado.

Como sempre as obsessões dos personagens de Bolaño criam uma atmosfera envolvente – sejam crimes, paixões, política ou literatura – que amplia o suspense do enredo a cada nova descoberta. A sutileza com que são descritos os detalhes, a cada capítulo (cada um representando um dia) carrega o leitor de maneira natural o que, aos poucos, também cria um thriller psicológico através de acontecimentos inesperados e inversão de valores.

Esta inversão de valores funciona como chave da reviravolta psíquica de Berger, como só sabemos o que ocorre por causa de seu diário também podemos perceber que aos poucos seu interesse pelos jogos de guerra – antes uma paixão e hobby irrefreáveis – caíram em segundo plano, porém em primeiro plano não existe um foco. O que ocorre então com esse personagem? Ele descreve realmente seus pensamentos nesse diário ou tenta romanceá-los? É fácil descobrir as falhas do personagem a sua escrita perde o tom jornalístico do começo – empregando palavras difíceis e descrições minuciosas – e soa mais como diário investigativo que por sua vez derrapa em descrições delirantes e contraditórias.

Quando consegue um parceiro novato para compartilhar seu interesse por jogos, Udo está envolto em um jogo fora dos tabuleiros e não percebe. Ele deixa pistas escritas sem saber, fala sobre as pessoas, sobre as conversas só que não reflete porque se sente cansado e absorto em uma obsessão invisível – ele mesmo não percebe suas obsessões e ignora o óbvio, mesmo auxiliado pela bela Frau Else.

A literatura está aquém comparado às outras obras do autor – claro que só por ser um diário já deveria contar – contudo o discurso recorrente de que essa arte não salvará tampouco mudará o mundo reflete na fala do personagem Queimado que ao ser questionado por Udo quais livros de poesia ele conhecia, o rapaz cita nomes como Neruda, Lorca e Vallejo, mas quando interrogado sobre quais os versos favoritos diz não se lembrar por causa da sua fraca memória, só rememora as sensações ao ler.

Quanto ao humor intrínseco – presente na extensa bibliografia do escritor – surge na obra com variação entre a sutileza (Udo joga com a Alemanha no seu jogo de Segunda Guerra Mundial) e o descarado, afinal Bolaño é ácido e crítico e, também, gratuito como quando descreve um travesti quiromântico chamado Andrômeda ou quando descreve paranóias com o “nada”

Se fosse publicado enquanto o autor estivesse vivo, provavelmente alguns personagens ganhariam mais destaque e alguns capítulos seriam melhor trabalhados ou quem sabe aumentaria o clima claustrofóbico, o que só elevaria mais ainda a qualidade desse romance que é um grande exemplar.

O Terceiro Reich é mais um exemplar da temática constante de Bolaño e mesmo assim longe de ser repetitiva, acrescentando novos horizontes e personagens marcantes a sua extensa, forte, labiríntica e viciante bibliografia.