O argentino Jorge Luis Borges já havia profetizado que depois da transformação do conto policial, de sua promoção de gênero menor à categoria central da literatura do século XX, chegaria o dia em que a ficção científica sofreria também a sua transmutação, exibindo todo o seu potencial através de uma futura geração de escritores. Não seria exagero dizer que esse futuro iniciou-se já nos anos 1960, talvez sem o conhecimento de Borges, quando Philip K. Dick, ele próprio um leitor voraz de Ficções, escreveu boa parte de suas grandes obras: O Homem no Castelo Alto, Dr. Bloodmoney, Ubik, Blade Runner (cujo título original – genial! – é Do Androids Dream with Eletric Sheeps?) e outros.

Nos últimos anos sua obra tem sido relançada aqui no Brasil, em boa parte graça à excelente iniciativa da Editora Aleph. Como forma de apoiar esse projeto, incentivando a publicação de vários títulos ainda inéditos em nosso país (Dr. Bloodmoney e A Transmigração de Timothy Archer são nossas sugestões!), a equipe do Meia Palavra resolveu percorrer seus contos e romances para apresentar alguns dos infinitos motivos para ler esse escritor, admirado por gente como Roberto Bolaño, Rodrigo Frésan e Ursula Le Guin.
Nascido em 1928, em Chicago, Philip K. Dick teve uma vida conturbada, temperada com uma personalidade paranóica, justificada pelos seus anos de ativismo no Partido Comunista norte-americano (a existência desse já parece tema de ficção científica para alguns…) que fez dele alvo de investigações do FBI e do Serviço Secreto das Forças Aéreas do EUA. Envolveu-se com filosofias gnósticas e orientais, aliando-as com experiências sensorialisticas regadas com drogas, elementos que aparecem em diversos textos, como VALIS e Três Estigmas de Palmer Eldricht. Em 1974, jurava ser contatando por inteligências alienígenas, em uma visão que misturava séries numéricas, figuras geométricas e ícones religiosos cristãos. Esse contato gerou uma torrente escritural de mais de 8.000 páginas, a maior parte delas inéditas.
Morreu em 1982, antes de ver o frisson de adaptações de suas obras ao cinema: Blade Runner (1982), por Ridley Scott; O Vingador do Futuro (1990) estrelado por Schwarzenegger ; Minority Report (2002) por Steven Spielberg, O Pagamento (2003) por John Woo e muitos outros. A partir deste ano, uma nova leva de filmes e séries já foram anunciados: Ridley Scott volta para fazer uma série baseada em O Homem do Castelo Alto, Matt Damon estrela Os Agentes do Destino, e a Warner Bros. já montou um grande planejamento para retomar a franquia Blade Runner, com novos filmes (prelúdios e continuações – notem o plural) e séries de TV.

Palazo: O Homem do Castelo Alto (1962): Em uma realidade alternativa, somos levados a um cenário perturbador. Os países do eixo, formado pela Alemanha nazista e o Japão imperial, venceram a segunda guerra mundial e são as duas maiores forças econônimcas e militares do mundo pós-guerra. Assim presenciamos a destruição da África, a exploração da América Latina, a escravidão dos negros, os judeus invisíveis, a corrida especial, os avanços tecnológicos, a conquista de Marte e Venus e o mundo dividido entre japoneses e alemães.

Philip K. Dick não constrói essa “nova” realidade com uma narrativa sequêncial, lógica e fácil para o leitor. A construção intercala personagens, e a narrativa passeia entre um narrador em terceira pessoa e o próprio protagonista de cada evento que deixa seus pensamentos soltos no meio da história. Assim é criada uma narrativa mágica, cheia de variações capazes de envolver o leitor nessa realidade alternativa e por vezes até questionar sua própria realidade.

Muitos dizem que esta é a obra prima do autor, vencedor do Prêmio Hugo em 1963, mas para mim é o primeiro de muitos livros que ainda vou ler de Philip K. Dick.

Tiago: “Podemos lembrá-lo para você por atacado”(1966) : Essa pequena obra-prima de Philip K. Dick, cujo título remete a um musical da Broadway, é um prenuncio de tudo o que escreveu, é uma pequena pílula cujos pretensos efeitos medicinais estão longe de ser a recuperação da capacidade mnemônica do paciente. Muito pelo contrário: o que vemos aqui é a desintegração de uma idéia banal de “memória”. A história foca no medíocre funcionário Douglas Quail que sonha viajar para Marte, desejo essa impossível de ser realizado, devido às restrições de sua posição social. Pede então que uma clínica, chamada Interplan Rekal, implante uma memória de uma viagem – tão real que seria mais vivida do que se ele realmente estivesse lá. Tudo se passaria como se ele fosse um agente trabalhando secretamente na Terra, em prol de Marte. O que acontece (ou não) é que de fato (ou bem o contrário disso) Quail era um agente implantado na Terra – tão secretamente que ele mesmo não sabia de sua condição. Esse looping do passado (e do futuro) não possui um fim: essa memória também será falsa, haverá uma outra, ainda mais verdadeira, mas que se revelará ainda mais falsa, etc etc etc. Esse é o centro nervoso de Philip K. Dick: de que há um desejo que precede toda a memória, que constrói toda a memória, mas que é um desejo voraz que não se contenta com nada, não tem modo de satisfação possível (basta lembra o que Ubik significa: o vazio voraz do desejo consumista que não dá lugar a nenhuma forma e a todas, ao mesmo tempo). E que o tempo… o tempo é só um efeito colateral de tudo isso…

Saiu traduzido no Brasil pela Magazine de Ficção Científica, em 1971, publicação que deveria ser lembrado mais, inclusive porque foi pioneira na divulgação de autores do calibre de Jorge Luis Borges, Ray Bradbury, Ursula Le Guin, além traduzir inéditos de Joseph Conrad, Appolinaire, entre outros.
Em tempo: Arnold Schwarzenegger estrelou um filme inspirado nessa narrativa chamado aqui de O Vingador do Futuro, aproveitando a esteira do sucesso de um certo exterminador… O título original, muito mais interessante, chama-se Total Recall. O filme, ainda que tenha marcado muita gente, só aproveita um argumento mínimo do conto. Contudo, isso só parece indicar que Philip K. Dick marca uma fantasia dos anos 1980, algo que pode ser entrevisto no igualmente infiel Blade Runner… Uma fantasia irrealizável para um tempo que gostaria de outro tempo…

Kika: Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (1964): Este foi o primeiro – espero que de muitos – livro lido de Philip K. Dick. Poderia dizer ainda, que foi um dos poucos livros de ficção científica na minha lista de livros lidos. E digo que foi eletrizante. A história, contada no futuro, parte do pressuposto que o leitor conhece as regras desta realidade inventada. As coisas são explicadas de maneira velada, cabendo ao leitor buscar as respostas no relato do autor. Aliás, nada fácil de absorver. Apesar de parecer complicado, Dick é um artista, pintando com palavras.É como se suas palavras invadissem diretamente nosso córtex visual com ambientes de Pat Insolente e viagens das drogas Can-D e Chew-Z. O que parece uma briga corporativa entre Leo Bulero e Palmer Eldritch, pela supremacia da venda de mini-ambientes terranos para colonizadores de outros planetas, se torna uma intrincada rede de intrigas, em que o real e o imaginário se confundem a ponto de não mais poderem ser separados. Aterrorizante. Fantástico!

Lucas: Blade Runner – O Caçador de Andróides (1968): Falar do livro pode parecer supérfluo depois da obra-prima de Ridley Scott, mas, como sempre acontece, o livro dá ainda mais lastro aos questionamentos propostos no filme. Oito andros (robôs-humanóides) fogem das colônias de Marte, onde trabalhavam para a parte da humanidade que teve recursos para emigrar para lá depois da Guerra Mundial Terminus, que condenou o bioma terrestre a emanações tóxicas e decadência genético-biológica progressiva. Esses robôs, cujo metabolismo não consegue dar-lhes a longevidade típica dos humanos, vem para a Terra, onde misturam-se à população para tentarem “viver” suas “vidas” de modo melhor que experimentavam em Marte. Porém, os caçadores de cabeças saem em seu encalço a soldo do governo para “aposentá-los”.

Rick Deckard é encarregado desses andros e começa a os perseguir, buscando aplicar o famoso teste Voigt-Kampff, que em tese comprova a (in)existência de empatia, a característica básica que separa os andros dos seres humanos. Usando da liberdade que a Ficção Científica proporciona e a eloquência da percepção de um mundo onde os seres humanos estão tornando-se obsoletos, onde ao colocarem-se como criadores, vivem os dilemas prometeicos de estarem no limiar de sua superação; K. Dick nos brinda com uma obra que revela a fragilidade da espécie humana e as deformações que o chamado “progresso científico-tecnológico” vem nos imputando a cada dia (e que cada vez mais nos aproxima a novas questões metafísicas e existenciais). Questionamentos como o que nos torna humanos; o que separa a vida da automatização e da existência e animação; a que ponto a sociedade científica-robótica-tecnológica pode levar a humanidade etc. são alguns dos pontos-chave que movem essa refinada, profunda e instigante obra de Philip K. Dick.

Anica: Ubik (1969): Em livros como Ubik, Philip K. Dick revela que sabe como ninguém lidar com o difícil tema da identidade. Indo além do enredo, passando também para as técnicas da narrativa, nada é o que parece ser, uma ideia pode mudar com uma simples virada de página. Com essa inconstância, o próprio leitor acaba questionando o que está lendo, num exercício constante de duvidar do narrador e do que ele nos conta.

É trabalhoso, mas uma tarefa recompensadora. Porque Ubik é uma obra única, que se destaca entre milhares da ficção científica e também daquelas que são apenas ficção. Usando elementos que já foram vistos em outras histórias, como os precogs de Minority Report, o livro começa com um grupo de inertials (que neutralizam poderes como os dos precogs) atendendo uma solicitação na Lua, e é depois de uma explosão que as história realmente começa. Depois disso, não há mais volta: você já foi completamente tragado pelo estilo de Philip K. Dick, pelo modo como ele consegue moldar a realidade da história como ninguém. Indicado não só para amantes do sci-fi, é para qualquer um que goste de boa literatura.

E para quem gosta de adaptações literárias para o cinema, é bom ficar atento. Saiu há pouco a notícia de que Michael Gondry quer adaptar Ubik para as telonas.

Pips: O Homem Duplo (1977): Num futuro não tão distante, a Substância D, uma droga altamente viciante, tomou conta das ruas. Bob Arctor é um viciado que vive numa casa com amigos que usam a substância em demasia, todavia, ele também é um agente infiltrado chamado Fred (sua identidade não é revelada devido um traje especial) que deve descobrir quem são os traficantes que fornecem a droga para Dona, sua namorada. Neste thriller de Philip K. Dick, escrito em “homenagem” aos seus amigos mortos ou viciados em drogas, vemos que uma pessoa perder a noção da realidade e não conseguir desempenhar seu papel, pois ao invés de fingir, ele realmente consome a substância e se torna dependente. Contudo o mais interessante são as revelações que pouco a pouco surgem. Quanto mais o personagem principal se infiltra menos ele sabe se é Bob ou Fred, não sabe em quem confiar e tenta usar a Substância D para esclarecer suas ideias. Esse livro também tem como grande êxito usar de maneira crível a linguagem de viciados e suas debilitações devido ao abuso. Ácido e enlouquecedor, O Homem Duplo é um exemplar diferencial na bibliografia de Philip K. Dick.

Luciano: VALIS (1981): Um de seus últimos livros, VALIS está para a obra de Philip K. Dick como Ecce Homo está para a de Nietszche. Os limites entre autor, narrador e personagem são incertos, pois ao mesmo tempo que o narrador afirma ser Horselover Fat ele aparece como sendo o próprio K. Dick – que conversa com Fat. Utilizando trechos de sua exegese- sua própria interpretação da bíblia, um texto com mais de oito mil páginas até hoje nunca publicado na íntegra- e trechos de uma ficção bastante excêntrica, o autor basicamente nos conta sobre como ver Deus mudou sua vida.

Não se deve esperar, no entanto, algo convencional. Talvez em toda a história ninguém tenha visto um Deus tão perturbado quanto o dele. VALIS é um livro extremamente complexo para se ler- mas isso só faz torná-lo ainda mais essencial.

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Editora Aleph

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