Antes mesmo de chegar ao fim de Moby Dick já sabia que ele entraria para o meu top10. O livro não é um clássico à toa, tem motivos muito cabíveis para figurar no cânone ocidental e estar entre os mais mais de qualquer lista que se preze. Pretendo aqui além das minhas opiniões particulares da experiência de leitor, também explicitar os motivos pelos quais o romance é um clássico.

Entrar na pele de Ismael, o narrador da história e estar sob as ordens do capitão Ahab é uma experiência literária única. Não são muitos os romances que conseguem causar tamanho efeito no leitor e construir uma expectativa tão monstruosa ao redor de um personagem como Melville o faz com Moby Dick, a baleia branca.

O Capitão Ahab, cujo navio “Pequod” é o palco do romance, é um velho lobo do mar que dedicou sua vida a navegar os mares e caçar baleias. Porém teve infausto destino ao topar com Moby Dick, a branca e leviatânica baleia que lhe arrancou a perna e feriu o espírito para a eternidade. Desde que foi obrigado a apoiar-se em uma perna de marfim, Ahab remói a vingança inconclusa que deseja mover a Moby Dick.

Melville viveu anos a bordo de navios, pescando baleias e aventurando-se pelas aquáticas e árduas veredas da vida de marujo. Dessa vasta experiência vivida é que ele extraiu a matéria-prima para sua literatura. Porém não devemos nos enganar, pois Moby Dick, assim como O coração das trevas, não é um romance marítimo de aventura pura e simples, mas uma epopéia profunda e subjetiva que consegue prender até o mais exigente dos leitores.

Como Carpeaux diz (eu sei, eu sei, consultar os ensinamentos desse emérito erudito vem se tornando meu procedimento padrão ultimamente) Moby Dick pode até ser considerado um manual de pesca a baleia. E com razão. As minúcias descritivas de Melville de cada procedimento envolvido na pesca, desde o rastreamento até a movimentação, da alimentação do animal até seus hábitos de reprodução, de suas classificações taxonômicas até estudos detalhados sobre seu organismo, tudo está contido no tijolão que é a obra-prima de Melville. Moby Dick é provavelmente a única chance que você vai ter de estudar biologia, comportamento e anatomia cetácea com poesia e referências literárias mescladas aos textos.

A paixão que o autor dedica a vida marítima é contagiante, a parte terrosa do mundo só é tolerável de tempos em tempos, pois o esplim a satura , de modo que o mar é que guarda potencialidades aventurosas infinitas, onde ele se sente mais vivo e mais liberto. É a chance de distanciar de um mundo e adentrar em outro, onde se escondem mistérios que estarrecem tanto o autor quanto o leitor que acompanha fielmente os relatos de Ismael.

Essa admiração pelos mistérios do mar que Melville evidencia a cada página serve inclusive de analogia para outras análises, para além dos domínios do livro em si. A literatura de Melville guarda um certo ressentimento do puritanismo, querendo singrar outras águas assim como Ismael esperava com avidez aventurar-se no mar outra vez (talvez Bartleby seja um indício para essa busca por liberdade). A constância e a vida regrada são motivos de aborrecimento, e o mar é o antídoto dessa realidade.

A literatura norte-americana ainda não havia se desvencilhado completamente dos modelos da velha pátria inglesa, de modo que Moby Dick seja também um passo rumo a criação de uma tradição literária independente da “cartilha” inglesa e até certo ponto, velho-mundista. Interessante também é como Melville subverte “preceitos puritanos” usando uma linguagem romântica cheia de floreios e aquela espécie de “etiqueta literária” (de rebuscos, profundo detalhamento, comedimento, elegância etc.) tão cara aos autores românticos.

Dos textos que li acerca do Moby Dick e do Melville, é ressaltado também que o homérico conflito de Ahab e a alva cachalote revela o embate universal do homem contra o irracional ou também do homem contra a natureza, debatendo-se com suas próprias potencialidades e fragilidades. Esse enfrentamento tem uma carga de misticismo, latente em cada momento em que Ismael descreve detalhes ínfimos do dia-a-dia do baleeiro “Pequod”, que coloco o mundo e o homem como o campo de batalha do bem e do mal.

Outro embate, que na minha leitura me pareceu mais evidente e que corrobora os indícios de misticismo, é o do homem versus destino. Ahab, o valente e insano capitão, revolta-se não só contra a albina baleia, mas também com seu inglório destino de eterno coxo. Sua vingança é mais do que a satisfação de uma reivindicação individual, é a luta prometeica do homem contra os desígnios divinos ou cósmicos, amargurada e obstinada até o fim.

Longe de esgotar a riqueza do romance, exorto aqui meus caros leitores que ponham sob as ordens de Melville e embarquem nessa jornada, é uma experiência inigualável. Empreendam a leitura desse calhamaço com a mesma obstinação com que Ahab perseguia Moby Dick, façam do livro sua baleia branca, garanto que não irão arrepender-se.