Um livro em que o enredo é praticamente inexistente, existe apenas um personagem e a maior parte do tempo tudo o que se tem são apenas descrições e pensamentos a respeito de literatura, arte e mesmo um pouco de ciência- pensamentos de um cunho pessimista, como se tudo já tivesse sido escrito, tudo já tivesse sido feito e dito, não restando mais nada.
Por mais contemporâneo que isso pareça, é um livro escrito há mais de 120 anos, escrito por um autor francês que foi bastante ligado ao naturalismo, mas que desligou-se do movimento a partir dessa obra: trata-se de “Às Avessas”, do francês J. K. Hyusmans, parte importante do cânone literário francês e universal- considerado um marco do decadentismo, foi uma das principais influências de Oscar Wilde, tanto em sua vida quanto em sua obra- e que acaba de ter uma nova edição publicada pela Penguin-Companhia das Letras.
Defini-lo como o protótipo do decadentismo, no entanto, é reduzir- e muito- o livro Talvez seja melhor usar a definição que Patrick McGuinness nos dá na introdução: ‘um livro em que a escritura naturalista (documentação e descrição, análise de sintomas) converge para temas “simbolistas” (solidão, refinamento, fantasia), com um fio condutor de filosofia decadentista (pessimismo, distorção, elitismo cultural)”.
O personagem é o duque Jean Des Esseintes- último remanescente de sua aristocrática família, devassada por doenças físicas e espirituais, causadas por diluições consangüíneas da linhagem. Nevrálgico e extremamente desanimado com o mundo que o cerca, isolou-se numa pequena cidade nas cercanias de Paris. A partir daí, tudo o que Hyusmans nos oferece são reflexões e umas poucas memórias.
Reflexões extremamente bem construídas e que utilizam de uma linguagem e de um nível de conhecimentos bastante complexos: a linguagem é tão rebuscada quanto é técnica e em tudo- literatura, perfumaria, pedras preciosas, gastronomia- existe um alto grau de detalhe e de refinamento. Apesar de ser incrível ver a que ponto desfila-se essa erudição, isso pode tornar-se um pouco estafante para o leitor- especialmente para quem (como eu) não conhece sobre a idade de prata da poesia latina ou detalhes sobre plantas exóticas e outras coisas mais.
Des Esseintes lembra-se de suas buscas desesperadas para obter algum prazer, e além dos métodos mais refinados já citados, ele também envolve-se em relações sexuais de teor complexo, seja com homens ou com mulheres- o auge disso sendo, talvez, seu relacionamento com uma ventríloqua de quem ele exigia que projetasse a voz de diferentes modos. Evoca, além disso, sua infância em um internato católico e os resultados disso em sua formação intelectual.
Para melhorar o entendimento e tornar a leitura mais palatável- o livro é bastante difícil- é importante ler a respeito. Afortunadamente essa edição tem não apenas o prefácio do tradutor- José Paulo Paes- e a introdução e notas de McGuinness, mas também o prefácio que o próprio autor escreveu 20 anos depois da publicação da primeira edição e críticas ao livro escritas na época em que foi lançado- algumas, inclusive, da pena de autores que Huysmans cita através de Des Esseintes.
Apesar de minhas resistências ao século XIX, à literatura francesa e ao ranço ligeiramente academicista da linguagem de Hyusmans é inegável o valor dessa obra que, quiçá possa mesmo ser chamada de obra-prima.
Às Avessas
Joris-Karl Huysmans.
Tradução de José Paulo Paes.
Penguin – Companhia Clássicos
352 págs
R$ 28
Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras
Oxe, deu vontade de ler. Em especial pelo lance da ventríloqua.
O meu comentário é o mais aleatório possível: não consigo acreditar que passei um tempão atualizando o site da Companhia das Letras, até a logo do “trem” aparecer (não é mineirês, é no lugar de “bicicleta, caravela, motocicleta, automóvel” mesmo); depois me dignei a copiá-la no Paint e tentei modificar o fundo (verde) pra cor preta, QUANDO aqui no Meia vocês usam justamente a logo do trem em preto e branco. Ai, meus sais (como diria o Mar Morto).
Boa resenha, Luciano. Apesar de todos os teus poréns no final, ela está bem boa.
Fui eu que recomendou o livro. : )
Então, não é um livro fácil mesmo, eu sei, mas acho que não é que nem, sei lá, Senhora, por exemplo, que ficou lá no século XIX (na minha opinião). Às Avessas, como você mesmo percebeu, ainda diz alguma coisa, especialmente pra gente neste início de século. As razões são muitas, mas acho que essa ligação vale pra todo mundo.
Enfim, parabéns por mais uma resenha boa. Pra incentivar a leitura, só faltou lembrar também do fato de ele comprar uma tartaruga só para incrustrar pedras preciosas nela. Crime ambiental em prol da estética,.
pelo amor, alguem sabe um site que eu possa baixar esse livro?
Des Esseints criou sua própria moral, uma moral que para nós, pobres mortais, é absolutamente imoral. Como exemplo, cito a passagem em que ele revela seu horror a crianças, dizendo que elas não deveriam ser concebidas. Ainda, fala da sua repulsa a um santo (cujo nome não me lembro) que amparava crianças abandonadas, porque, segundo Des Esseints elas deveriam morrer a míngua, já que a vida é um ciclo de sofrimento, e, deixa-las morrer, seria um gesto de “caridade”. Esse personagem mexeu profundamente comigo. Muitas vezes me sinto como ele, fatigada de conversas inuteis, de gente chata, sem um minimo de cultura, de gente que não valoriza a estética, enfim, também crio, muitas vezes, minha própria moral que, por motivos obvios, nunca alcançam o mundo externo. Des Esseints e Holden Caufiel (O Apanhador no Campo de Centeio), me parecem ter a mesma essencia.