David Foster Wallace (1962-2008)

Quando eu fui ler David Foster Wallace (atrasado, como sempre) foi por causa de uma dica do Cassiano Elek, hoje editor da Cosac, que na época assinava uma preciosa coluna na Folha em que falava, entre outras coisas, de lacunas do mercado editorial brasileiro. E lá ele comentava e meio que fazia uma propaganda do megacatatau Infinite Jest, de 1996. Isso foi em 2004… De lá pra cá eu li tudo do cara. Tudo que existe em português, tudo que existe publicado, tudo que ainda nem foi publicado mas que dá pra achar em sites, arquivos de áudio, vídeos de youtube. Onde for.

Na época eu estava metido no projeto-ulysses, de onde ainda não saí, e estava meio que desesperado pra tentar achar vida inteligente pós-joyceana. Pra me provar que a literatura tinha continuado etc… (é, eu andava meio xiita). Foi quando comecei a ler Gaddis, Pynchon e acima de tudo Wallace. De lá pra cá ele saiu da posição de autor cultuado especialmente por outros escritores (e por gente ligada de verdade, que nem o Elek), pra de mito de toda uma geração. O maior escritor americano do seu tempo u.s.w. De lá pra cá ele casou, fez muito sucesso, lançou mais uns livros e se matou, em 2008. Tio, então eu queria saber qual apito que esse cara toca/tocava. Pois vai.

Definições (ou: DFW é, dois-pontos)

1. O cara que os leitores passaram a chamar de Dê Efe Dábliu. Como se ele fosse uma instituição. E é…?

2. O cara que literarizou todo um campo “feio” do vocabulário e da sintaxe do inglês. Gírias, sim. Mas também todo um lado marketal, administrativo. Siglas, barras (como ali em cima). O cara que era capaz de abreviar como a.d. algo como “aspas digitais”, quando o personagem aspeia manualmente a própria fala.

3. O criador da conjunção composta. Como em: and then but so, ou e aí mas então, em começo de frase, na tentativa de imitar a pressa e o atabalhoamento do discurso oral.

4. O maior cultor da nota de rodapé como meio literário.

5. O cara que foi parando de usar todas essas coisas aí de cima na medida em que elas iam virando “marcas”, ou “moda”.

6. O sujeito que levou mais longe a mistura de bobagem e lirismo que caracteriza o melhor Pynchon (humor e profundidade, se você quiser).

7. O sujeito que mais usou um ferramental de filósofo (era a formação dele) pra produzir literatura nos tempos recentes.

8. Provavelmente o maior renovador da forma do ensaio no mundo americano das últimas décadas. (Recentemente um editor de uma revista disse que não passa um dia sem que ele receba uma proposta de “um olhar à la DFW” sobre tal ou qual tema.)

9. O maior e o mais desavergonhado dos humanistas da literatura contemporânea.

Livros

Sujeito deixou dois romances.

10. The Broom of the System, de 1987, que era o TCC dele! Ou seja, a monografia de conclusão do curso de redação criativa na universidade. Belíssimo romanção que tem desde uma cacatua (Vlad, o empalador) que de repente começa a recitar a bíblia, até uma intriga químico-industrial envolvendo um asilo de velhinhos e uma heroína de all-star. Mas, sério, se você realmente quiser saber qual a graça do livro, te recomendo dar uma lidinha em Wittgenstein…? Como assim, precisa Wittgenstein pra entender um livro que tem uma cacatua com nome de vampiro? Precisar não precisa. Mas que faz mais sentido, lá isso faz. Eis o mistério do homem.

11. Infinite Jest, 1996, o calhamaço de mais de 1000 páginas que fez a fama e a infâmia de DFW. Uma história alucinada sobre prodígios do tênis, drogas, dependências e etc. Dezenas de personagens impagáveis e inesquecíveis. Mas, acima de tudo, um livro com um tema, o nosso “vício” em prazer e entretenimento. O mcguffin do livro, por exemplo, é um filme (ou um “entretenimento”) chamado precisamente Infinite Jest, que pode existir, pode não existir, e que aparentemente é tão delirantemente interessante que faz com que seus espectadores fiquem presos à frente da tela, querendo nada além de reassistir o mesmo loop, até morrerem de inanição. Parece até que uma facção terrorista separatista canadense (sim) está usando o filme como arma contra membros da ONAN (pun intended), a Organização das Nações da América do Norte que, depois da Reconfiguração, fundiu todo o subcontinente em um único país e confirmou a centralidade dos antigos Estados Unidos, que agora usam grandes áreas do seu vizinho do norte, por exemplo, como depósito de lixo, catapultado até ali de grandes distâncias. O livro é complicado. Muita gente, muitos nomes, muitos enredos, muuuitas notas de rodapé, algumas com dezenas de páginas. Mas é, acima de tudo, simultaneamente divertidíssimo e dolorosíssimo. Símbolo? Tem um cara que, durante um assalto, é amarrado e amordaçado pelos ladrões. Mas ele está resfriadíssimo. Com o nariz entupido. E morre. Afogado em meleca…? Quase redefine “humor negro”. Aliás, boa parte da catástrofe que recai sobre um dos protagonistas (que realizou esse assalto) vem do fato de ele, em outro assalto, ter entrado numa casa e deixado tudo intocado. Somente pra mandar depois pro dono (um inimigo e sua futura perdição), uma foto em que ele estava com as escovas de dente da família (depois devidamente devolvidas ao armário) enfiadas no… Símbolos. É tudo bizarro. Engraçado mesmo. Mas “pare pra pensar” (a frase mais valiosa pro leitor de DFW), ou “ponha-se no lugar deles”… e aí tudo muda de figura.

12. The Pale King, que ele deixou incompleto ao morrer, e que sai daqui a poucos dias. E que aparentemente era, como IJ pretendia ser um livro triste sobre vícios, um livro lento sobre tédio.

Três livros de contos

13. Girl with curious hair, 1989, que é a coisa mais próxima da “ortodoxia” pós-moderna em toda a produção dele. Excelentes momentos. Mas o livro mais fraco do autor. Não se engane, no entanto, o mais fraco dele ainda tem muita coisa a oferecer. E alguns dos contos são simplesmente sublimes.

14. Brief interviews with hideous men, 1999. Já se disse que ele tendia a experimentar mais com formas narrativas nos contos que nos romances (o que, aliás, faz sentido pacas, né?), e esse livro, posterior a IJ é também muito mais póich-muderrno. Há contos de todo tipo, desde uma entrada fictícia de dicionário, a um miniconto de meia página. Narrativas mais “ortodoxas”, como o perfeito (sim, eu pensei bem antes de escolher o adjetivo) “Forever overhead”, mais alegóricas como a bizarra (e recentemente transformada em ópera) “Tri-Stan: I sold Sissee Nar to Ecko”, que é uma reencanação do mito de narciso, num futuro distante, no mundo das cadeias de televisão, e de todos os jeitos do meio do caminho. Dois grandes destaques. A série que dá nome ao livro (e ao filme, recente, beeem bacaninha), em que diversos anônimos falam aparentemente para uma entrevistadora, cujas réplicas são suprimidas, sobre assuntos variados. Tem coisa épica nesse grupo. Além de um dos contos mais humana, filosófica e epistemologicamente fodidos que eu já li, em que o narrador trata da obra de Viktor Frankl e narra um estupro com uma garrafa. De te mudar mesmo. Pra tudo. Outro (destaque). A incrível meta-meta-estória de “Octet”, em que o autor – e não “um” autor – tenta questionar até as meta-estórias pós-modernas típicas, tenta desesperadamente falar com você.

15. Oblivion, 2004. O melhor livro de contos que você pode ler em muito tempo. Vai por mim. Quase todo o aparato meta-pós-isso-aquilo foi posto de lado em nome de contos tremendamente tocantes, realizados com uma prosa luminosa. Ele continua usando o bizarro misturado com o quotidiano (o cara que faz cocô em forma de estátuas famosas e os reality shows de uma empresa, sim, pasme, brasileira). Mas agora de uma forma muito mais concentrada no efeito sobre o leitor, e muito menos na experimentação formal. Difícil escolher destaques. Mas “The soul is not a smithy” é uma verdadeira joia. Assim como o brevíssimo “Incarnations of burned children”. O melhor livro que ele deixou, e que parecia apontar pra um caminho ainda mais foda, ainda mais preciso que o do romance anterior.

16. Nota: de todos esses livros citados até aqui, só Breves entrevistas com homens hediondos saiu no Brasil. Pela Companhia das letras. Alguma outra coisa é encontrável na internet. Na não-ficção vamos por partes.

17. Primeiro, os dois livros de coletâneas de ensaios (a mesma Companhia das Letras prepara pro ano que vem uma seleção de ensaios traduzidos por Danieis Galera e Pellizzari). A supposedly fun thing I’ll never do again, 1997, e Consider the lobster, 2005. Esses ensaios são quase mais empolgantes que a ficção. Parece que era aqui que o cara achava o tom entre a reflexão filosófica, humanística e a diversão com vozes, prosas e registros, de um jeito ainda mais poderoso. Os temas mais improváveis e mais singulares, abordados por uma persona ensaística que parece o irmão-prodígio de Woody Allen. Pra qualquer leitor. Leia tipo já. Ria um monte. Pense demais.

18. Um livro, Signifying rappers, 1990, com um colega de faculdade, que ainda hoje é considerado um dos primeiros destaques acadêmicos sobre o hip-hop. Mas esse eu não li. Viu? E ainda menti lá em cima.

19. Dois livros acadêmicos, Fate, time and language, que saiu no ano passado e publica o outro TCC dele, em filosofia. Lógica modal. Mais pra quem é do ramo.

E Everything and more, um livrinho sobre o conceito de infinito que é o livro de vulgarização científica mais divertido que eu já vi. Dizem que a matemática é meio furada, mas a prosa… É como ter aula com um matemático alucinado, aquele cara bacanão que você sonhava que podia existir quando estavam tentando te ensinar radiciação…

20. Um outro póstumo, singularíssimo, This is water, que na verdade é a transcrição em livro de um discurso de formatura que ele fez em 2005. É provavelmente a melhor coisa pra você ver se quer se aventurar por essa ficção mais madura do cara. Por aqui, saiu publicado na revista Piauí. E acho que ainda dá pra encontrar online facinho. Montaigne na veia. De um jeito muito cool. Uma puta aula sobre como ser no mundo.

Juízo

21. Tenha.

22. Cê gosta de ficção? Leia. Cê gosta de ficção inventiva formalmente? Leia mesmo. Cê gosta de ser obrigado a pensar? Leia correndo (ou andando). Cê quer saber se existia vida inteligente na literatura dos anos 90/2000? Leia, ah.. leia.

Cê quer saber se consegue ficar comovida e inconformada com a morte de um cara que você nunca conheceu?

Sobre o autor: Caetano Waldrigues Galindo 1 é professor de linguística e tradução no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná e é responsável pela nova tradução da obra Ulysses de James Joyce que será lançado em 2012 pela Penguin-Companhia das Letras. Quando o Ulysses for publicado, dependendo do jeito de contar, será algo como o 15o-20o livro de outras pessoas que ele já escreveu.

  1.  confira aqui o 10 perguntas e meia com Caetano W. Galindo