Kathy C. é uma personagem complexa demais para se apresentar em apenas duas horas de filme. Ao menos é isso que vem à mente durante a leitura do romance de Kazuo Ishiguro: se cada minuto da versão cinematográfica fosse dedicado exclusivamente a suas ações e devaneios (o que talvez levasse a um abuso do recurso do voice-over), mesmo assim algumas de suas facetas não seriam mostradas. Ao falar disso, deixo explícito que não esqueci as diferenças entre um meio audiovisual, como o cinema, e um meio meramente visual, como a literatura. Aquilo que escrevi serve apenas para deixar claro que você vai querer passar mais do que duas horas na companhia dela.

Isso porque ela é uma excelente contadora de histórias . Não que as invente: são todas fruto de sua boa memória. Kathy começa se apresentando, fala um pouco sobre seu trabalho, um pouco sobre o internato em que passou a infância, Hailsham. Quando você vê, já foi fisgado. Como Sherazade, às vezes cita um assunto apenas para informar que ainda não é a hora da gente saber tudo, que depois ela contará com maiores detalhes. E não se esquece de nenhum fio solto: se ela promete retomar o assunto, enquanto alterna entre tempos e épocas em sua narração, pode ter certeza de que cumprirá a promessa.

Mas qual é a profissão dela? O que exatamente era aquele internato? Ela não diz uma palavra que nos seja desconhecida, mas termos como “cuidador”, “doador” e “conclusão” ganham sentidos bem específicos quando utilizados por ela – assim como “personalidade”, “capacidade” e “pessoa” têm um sentido distinto no juridiquês e “linguagem”, “língua“ e “letra” são conceitos bem específicos no letrês. Se você viu o filme, não se surpreende: sabe que ela – uma “cuidadora” – supervisiona “doadores”, pessoas cuja razão para existirem consiste em doarem seus órgãos sucessivamente para as pessoas normais, como parte do avanço da medicina da época, em um processo que termina em uma “conclusão” – quando 4 órgãos são retirados, normalmente não há como manter o doador com vida.

Se você já tinha assistido ao filme “A Ilha”, de Michael Bay, talvez já tenha ficado bastante satisfeito com os rumos que “Não me abandone jamais” apresenta na telona. Algo que vai além da interessante sinopse que promete apresentar o ponto de vista desses clones, para os quais o destino é inevitável. Enquanto o roteiro de Bay apresenta tantos furos quanto uma rede de crochê, percebe-se no filme de Mark Romanek um trabalho maior de imaginação, com o qual não se faz boa ficção científica: ao criar um mundo novo, não basta uma ideia legal; precisa conseguir mensurar as nuances do universo criado a partir de um “e se…”.

E se isso aparece de modo apressado no filme, se Kathy parece frágil demais, se alguns podem tê-lo visto como uma história de amor convencional a partir do início do terceiro ato, a culpa é das escolhas que se deve fazer ao adaptar um livro para o cinema. Porém, como espectador, o filme não perdeu sua força por causa de como terminou. Apesar de alguns caminhos inexplorados e de tantas coisas não ditas, ao terminar a sessão, só consegui pensar “Pô, como o livro deve ser bom, viu?”.

Kathy é muito mais interessante do que a mocinha que há no filme. Mas isso eu já falei, né? Mais importante ainda é o que vem nas páginas finais, uma prova de que houve toda uma construção por trás do scifi low-tech do romance de Ishiguro. Kathy e Tommy, cuidadora e doador, tentam um “adiamento” – boatos há que aqueles que conseguem provar o amor verdadeiro (expressão que deve estar entre as patentes registradas por Walt Disney) conseguem ganhar um tempo para vivê-lo, sem se preocuparem com atender a propósitos medicinais. A cena é semelhante à do filme. Só que no livro, conquanto restem poucas páginas – análogas aos minutos restantes da película quando a cena ocorre –, não somos decepcionados pela Madame e por Miss Emily, responsáveis por Hailsham. Elas nada omitem. Falam com uma franqueza que dói no leitor, que aprendeu a cultivar esperanças, que aprendeu que o amor verdadeiro tudo vence. A franqueza é semelhante à de alguns médicos ao falar com doentes terminais, que precisam saber que vivem seus últimos momentos. Questões éticas, educacionais, tudo é revelado integralmente, com o mínimo de lacunas
possível em uma conversa. Destas páginas, cito apenas um trecho:

E durante muito tempo as pessoas preferiam acreditar que esses órgãos surgiam do nada ou, no máximo, que cresciam numa espécie de vácuo

Se o filme parece querer resumir tudo a uma história de amor, o que incomodou a alguns, o sentimento é abordado no romance como apenas uma das diversas dimensões de ser humano negadas a Kathy e a Tommy. Eles aproveitam o que podem, foram educados para não pensarem em escapar de seus destinos senão pelas vias burocráticas tradicionais, irredutíveis. De resto, já se conformaram – como percebemos pelas palavras de Tommy:

Não consigo parar de pensar nesse rio, não sei onde, cujas águas se movem com uma velocidade impressionante. E nas duas pessoas dentro da água, tentando se segurar uma na outra, se agarrando o máximo que podem, mas no fim não dá mais. A corrente é muito forte. Eles precisam se soltar, se separar. É assim que eu acho que acontece com a gente. É uma pena, Kath, porque nós nos amamos a vida toda. Mas, no fim, não deu para ficarmos juntos para sempre.