Um dos pontos geralmente abordados numa análise literária é o cunho autobiográfico. Os traços que indicam se aquele personagem tem relação com seu criador, se os seus traumas, suas aventuras, suas alucinações, tudo aglutinasse dentro do autor que resolveu expor no papel. Há casos sim de traços autobiográficos em diversos grandes livros da literatura, de Joyce a Hesse, que podem aflorar as mais fortes discussões de qual traço é o verdadeiro, de onde partiu a ideia para escrever e transformar uma vivência em escrita – será que foram inconscientes ou totalmente planejados? O ponto sensível de Cordilheira, de Daniel Galera, é intensificar a relação de autores e personagens, quando um começa e outro termina mesclando com uma obsessão plurilateral.Primeiro volume da coleção Amores Expressos, projeto financiado por Rodrigo Teixeira e lançado pela Companhia das Letras, levou o escritor paulistano (radicado em Porto Alegre) a Buenos Aires para escrever uma história de amor. Na obra, Galera nos apresenta Anita, uma jovem e promissora escritora, recém-saída de um relacionamento porque queria ter um filho do homem que julgava amar. Sua vida fora traumática desde o início, sofre com a sombra da morte da mãe no parto e pelo enterro de seu pai anos mais tarde. Após o término de seu relacionamento, ela resolve passar algum tempo em Buenos Aires, aproveitando que seu livro fora traduzido para o espanhol e lançado no país.

Partindo de uma necessidade de busca pessoal dentro de um país que não é o seu e de um idioma que não domina, Anita se envolve com um grupo de escritores locais quando inicia uma tórrida paixão com Holden, um fã declarado do seu romance. Não se trata de um grupo, uma turma, mas de uma “seita” de pessoas que acredita que realidade e ficção devem caminhar juntas, eles incorporam seus próprios personagens, vivem com seus nomes, com suas profissões e com suas atitudes. Esses personagens são pessoas, as pessoas são os autores e os autores até então não existem, pois tudo é real – a melhor maneira de um idealismo transcendental. Essa utopia é salientada pelo desprezo do pequeno grupo com os autores argentinos consagrados (Cortázar, Borges, Casares, Sábato).

A escolha dos nomes desses personagens reais por seus autores tem um forte significado. Holden, inspirado em O Apanhador no Campo de Centeio, oscila de momentos de pura inocência e pura violência – quase como um psicopata moldado para conquistar suas vítimas e depois despachá-las ou um líder de fanáticos, quase como Charles Manson, capaz de chegar ao limite de seus ideais. As descobertas de Anita e sua inserção no mundo fantástico-realista a coloca em cheque sobre seu próprio romance e suas intenções de ter um filho. Uma salvação, uma dádiva ou uma obsessão? A diferença entre ela e toda a seita de seus amigos irá desembocar num choque entre a sua história pessoal e a deles por mais tristes, viscerais, nojentas e alegóricas que sejam.

Em seus momentos inspirados, Cordilheira é um romance bem desenvolvido, uma história de amor que inclui em suas camadas um pouco de paixão, loucura, obsessão, arrependimento e boas referências, explícitas e implícitas, sobre literatura. Infelizmente, após um clímax arrebatador na Terra do Fogo – com ótimas descrições do ambiente e das sensações – Galera insere um posfácio piegas e um tanto desnecessário para fechar o ciclo de Anita na volta Brasil.