Em Setembro de 2010, num sábado do qual não recordo o numeral, minha família e eu estávamos voltando para casa logo após o almoço tradicional (podem dizer o que quiser sobre os domenicais, lá em casa são os sabadais). Quando abrimos a porta do hall de entrada e demos de cara com uma sala inundada. Do teto surgia uma cascata – ou dilúvio, que tomava conta dos sofás e cadeiras. Cada um correu para seu cômodo para ver o estrago nas roupas, sapatos e aparelhos eletrônicos, e eu, na primeira iluminação das minhas sinapses, fui até o meu armário de livros – imaginando uma biblioteca de Alexandria meets a Arca de Noé. Todos ainda estavam intactos. Faltava pouco para serem arrastados por uma chuva torrencial que só acontecia dentro de casa – lá fora o sol ainda brilhava às quatro da tarde – o problema da casa era uma gambiarra do proprietário anterior nas caixas d’água.

Tenho apreço enorme por alguns volumes que existem na minha coleção mais do que outros. Alguns foram encontrados durante garimpadas em sebos ao melhor estilo Serra Pelada. Entre os muitos volumes que poderiam se perder para sempre estava a primeira edição – primeira mesmo, ortografia antiga e as folhas amareladas que quase desmancham quando eu respiro em cima delas – de O Tempo e o Vento. Algumas edições de Grande Sertão: Veredas – um dos fatos curiosos sobre esse grande romance de Guimarães Rosa é que não resisto comprar as mais diversas edições dele. A luxuosa que saiu em 2006 com um DVD, um livro sobre a exposição no Museu da Língua Portuguesa e com um número próprio (provando que a tiragem era limitada); e a versão econômica que foi lançada em seguida. Outra edição é aquelas que são mais direcionadas aos jovens (com uma capa vermelha e letras em branco), uma da década de 1970, outra da década de 1980 e mais duas da década de 1990 – uma delas é uma edição em papel bíblia que vem com Grande Sertão, Sagarana e Primeiras Estórias lançada pela Nova Aguilar. Esse lance de comprar diversas edições do mesmo livro pode soar meio bizarro, me sinto como o personagem do Mel Gibson, em Teoria da Conspiração, que toda vez, ao entrar numa livraria, precisava comprar O Apanhador no Campo de Centeio.

Pensando nesses dois casos em específico tenho uma taquicardia e me sinto nauseado (1) por não encontrar facilmente os livros que citei acima (2) por pensar que muitos daqueles livros me acompanharam durante anos: Coração Satânico (presente da minha mãe quando sai de casa), O Velho e o Mar (uma versão pocket americana que ganhei de presente de uma amiga que me apresentou Hemingway), Las Armas Secretas (meu primeiro livro de Cortázar e primeiro lido em Espanhol), Luneta Mágica (uma espécie de diário de Ingmar Bergman), Crime e Castigo (impresso de cabeça para baixo, se alguém me vê lendo ele no metrô cogitam que sou como Bush), Ulysses (outro numa edição antiga, gasta e enrolada em fita crepe [culpa do dono anterior]), O Nome da Rosa (edição com um mapa muito bom da biblioteca), Simulacros e Simulação (minha fase antenado na sociologia e nos meios de comunicação), etc., e estão todos rabiscados e com diversas anotações (dos tempos em que o marca texto era meu melhor amigo inanimado) para ressaltar passagens memoráveis, enigmáticas e esdrúxulas. Alguns poderiam ser recuperados? Claro. Seria a mesma coisa? Jamais. A segunda parte da missão era encaixotá-los e mantê-los reféns no porão de casa esperando o dia em que eles poderiam ver a luz de sua prateleira.

Não é somente por puro apego material que gosto dos meus livros – e seria mentiroso se negasse tal fato, mas é bem ruim quando você está lendo a obra de algum autor e sente que precisa consultar a obra anterior. Afinal, o que seria ler Ulysses sem ter O Retrato do Artista Quando Jovem ao alcance para lembrar todo o pano de fundo de Stephen Dedalus? Ou reler os diversos autores que Bolaño e Vila-Matas citam em seus romances? Até mesmo ouvir Stairway to Heaven e não querer dar uma relida em O Senhor dos Anéis? Ler a Era do Vazio e correr para assistir um filme de Quentin Tarantino? E claro, esse seria meu momento de Drama Queen, qualquer pessoa pode virar para mim e falar: compre logo! Está com desconto no Submarino!

O dia de liberdade condicional quase chegou (agora em Junho de 2011) e fiquei muito feliz de ver que as caixas estavam intactas, não houve infiltração e todos pareciam amedrontados, porém felizes em saber que a pena de deles estava quase no fim. Agora preciso resolver outro impasse: prateleiras para todos.