Acho que vocês já devem saber que a literatura latino-americana é uma das minhas preferidas, não é? Não que eu tenha lido milhões de páginas dela ou sobre ela, mas não posso me queixar de não ter encontrado ótimas obras dentro desse grande grupo: Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Miguel Angel Astúrias etc.

Uma das características que mais chama a atenção (e que é um dos motivos pelos quais a literatura latino-americana mais me fascina) é a perspectiva combativa e profundamente consciente de sua condição sui generis na história da humanidade. OK, isso é algo que, mantendo em mente as especificidades, poderia ser dito de praticamente todos os grandes escritores em relação às literaturas de seus países ou às questões de seu tempo. No caso da América Latina, isso ganha contornos diferentes quando se trata da peculiaridade avassaladora e destrutiva iniciada com a chegada dos navegadores nessas terras.

Tzvetan Todorov explorou essa questão de maneira magnífica em A Conquista da América: a questão do outro; e Serge Gruzinski e Carmem Bernand conseguem desenhar um panorama geral muito interessante (e bastante profunda para uma obra que lida com tal envergadura temporal e complexidade temática) em História do Novo Mundo: Descoberta à Conquista. E como esquecer do lamento tonitruante de Eduardo Galeano em As veias abertas da América Latina? Grande parte dos autores que citei no parágrafo acima, além dos vários outros não-citados, tem profundo conhecimento desse passado trágico que permeia toda a História (e mais contundentemente ainda) o presente latino-americano.

O detalhe é que, seja na obra dos autores supracitados, seja na escola, não conseguimos muitas vezes dimensionar a crueldade e o estigma construído para a “civilização latino-americana” a partir desse contexto, uma vez que não dedicamos lá muito tempo ao estudo dessa realidade. É por isso que venho aqui propor a leitura de um livro que embora curto, consegue tratar de forma visceral e chocante do processo de “conquista” (como essa palavra saneia o sangue e a crueldade, não?) da América: Brevíssima Relação da Destruição das Índias.

O autor, Bartolomé de Las Casas, um frade dominicano que esteve presente na América na época em que ela foi invadida pelos espanhóis, relata com crueza e visceralidade a matança ou o genocídio que foi esse processo, mesmo que ele seja encarado por muitos (às vezes até inocentemente) como conquista ou até mesmo como descobrimento. É “engraçado” ver como esse conteúdo vem a tona no livro didático somente quando a Europa resolve voltar-se ao ocidente e “descobrir” o novo mundo, como se não houvesse nada nem ninguém digno de nota nessas terras antes de 1492 ou que foi a Europa que trouxe relevância para essa região e os que aqui habitavam.

Não são poucos os exemplos de crueldade que saltam aos olhos no livro: índios sendo pendurados sobre uma fogueira, tendo membros decepados, sendo torturados, escravizados, vendo suas mulheres sendo estupradas, sua cultura vilipendiada etc., e tudo isso enquanto as tentativas de conversão ao cristianismo continuam e se intensificam. Há, por exemplo, um momento em que Las Casas descreve como os índios são “usados” pelos espanhóis na cata de pérolas. É impossível não se sentir revoltado quando os efeitos dessa pesca são descritos: o sal do mar e o calor do sol tornam a pele dos índios uma crosta lacerada, extremamente sensível, de modo que eles se assemelham mais a bestas marinhas do que a seres humanos.

Há de se considerar também que Las Casas era um dos que se opunha a determinados aspectos da cultura dos índios, pois estava imbuído em sua conversão, sendo que por isso, sua narrativa abunda em metáforas cristãs, que enxerga os índios como cordeiros a exemplo de Jesus, ou que eles nada fazem para evitar sua malfadada sina e assim por diante, visão fatalista e vitimizadora que já foi desconstruída por outros historiadores.

Talvez se diga que Las Casas não é o melhor exemplo a ser aqui citado, por se tratar de um europeu enxergando “o outro” indígena, ou que o atributo de vítimas inocentes que ele imputa aos índios omite resistências bastante pujantes; o que não seria de todo mentira, mas ele consegue dar mais vivacidade a uma das dimensões trágicas que ensangüenta o  passado latino-americano e que, apesar das preocupações diversas dos escritores latino-americanos mais contemporâneos, permeia a obra e o sentimento de unidade que caracteriza tanto esses países quanto seus escritores.

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