Algo que pode tornar qualquer enredo mais interessante, um crime vem quase sempre acompanhado de mistério. Aparecem na Literatura de diversas maneiras, ora óbvias e parte principal da trama (como acontece nas histórias de Sherlock Holmes escritas por Sir Arthur Conan Doyle), seja como uma espécie de combustível para impulsionar a narrativa (e aí os exemplos são inumeráveis, começando desde o rapto de Helena de Tróia n‘A Ilíada de Homero até o jogo de gato e rato entre Chigurh e Moss em Onde os fracos não tem vez de Cormac McCarthy). É presença tão constante em livros que chega ser difícil não lembrar do ator em Rosencrantz and Guildenstern Are Dead dizendo: Bem, nós podemos fazer para você sangue com amor sem a retórica, e podemos fazer sangue e retórica sem o amor, e podemos fazer os três ao mesmo tempo ou consecutivamente. Mas não podemos oferecer amor e retórica sem o sangue. Sangue é compulsório. Eles adoram sangue, compreende? Confira agora a seleção que a equipe do Meia Palavra fez de livros com crimes.

Pips: O Vendedor de Armas (Hugh Laurie)

Antes de ficar famoso mundialmente interpretando o personagem Gregory House, Hugh Laurie se aventurou pelo mundo da literatura com O Vendedor de Armas. Thomas Lang é um ex-militar contratado para matar um empresário, mas recusa em seguida. Ao tentar descobrir o que há nesse estranho contato acaba envolvido em uma trama de vendas de arma e ligações com a CIA. Hugh Laurie cria um personagem auto-confiante, desbocado, ácido e conhecedor de diversas técnicas – as quais ele explica como se lesse no manual da academia militar – que não ofusca uma história de tramas emaranhadas e repleta de erros em trocas de informações equivocadas. Os clichês do gênero estão lá para serem aproveitados e zombados. Há anos o autor tenta tirar do papel a adaptação cinematográfica e ensaia para lançar uma nova aventura.

Izze: Vernon God Little (DBC Pierre)

Em uma fictícia cidade do México, Jesus Navarro entrou em sua escola atirando em professores e colegas e depois se suicidou. Parece só mais uma história sobre um garoto revoltado e humilhado, que em algum momento explode e decide que a melhor forma de escapar dessas humilhações é acabando definitivamente com quem as faz. Mas não, os atos de Jesus Navarro não deram fim só a vida dessas pessoas, mas abalou muito a de seu melhor amigo, Vernon. Prestes a completar 16 anos, com uma família em desgraça e a cabeça à mil com suas fantasias e paranoias, Vernon é acusado de ser cúmplice do amigo, e passa a ser procurado pela polícia e perseguido pela imprensa. As manipulações de um técnico da TV que finge ser repórter convence até sua família de que ele teve sim participação no massacre, e resta à Vernon fugir da cidade para escapar da condenação. Escolhi Vernon God Little para esse Indica por ele não ser um livro tão tradicional sobre crimes. A história não gira apenas em torno dos traumas desse massacre, e vai no sentido contrário do que se espera de um livro com esse tema: não busca descobrir culpados, adivinhar motivações, mas sim provar que não houve participação alguma do protagonista nessa atrocidade onde o próprio culpado já está morto. DBC Pierre, pseudônimo de Peter Finaly, entra fundo na mente adolescente fervilhando de hormônios, e coloca no texto as suas maneiras de falar e pensar, o que aproxima ainda mais o leitor da personagem assustada e desorientada, indignada por ser acusada de algo que não fez, mas ainda sim capaz de fazer o leitor rir com seu jeito cômico, seu humor negro.

Luciano: Cosmos (Witold Gombrowicz)

Um crime que começa bizarro e, ao invés de ser solucionado, torna-se cada vez mais bizarro. Se bem que, talvez, essa mesma estranheza seja a solução do mistério insolúvel. Raciocínios nem um pouco fleumáticos, surgidos a partir da lógica pervertida que une um pássaro enforcado a uma seta e um gato enforcado e deságua em um homem enforcado. Isso, sem contar o belo lábio de uma jovem recém-casada e o reptiliano lábio deformado da empregada da casa onde o protagonista e seu companheiro Fuks- que, aparentemente, tem uma habilidade especialpara despertar a irritação nas pessoas- passam o verão.  Último livro do polonês Witold Gombrowicz, é uma obra prima que serve de homenagem à confusão e loucura.

Kika: Quando os Adams saíram de férias (Mendal W. Johnson)

Barbara é uma jovem babá de 19 anos, contratada por uma família americana média para cuidar de seus filhos durante uma viagem. Numa casa do interior dos Estados Unidos, Bárbara será vitima de diversos crimes cometidos por “inocentes” crianças e adolescentes com idade máxima de 15 anos. O nível de crueldade e a verossimilhança dos diálogos faz desse um dos melhores livros que li na vida. O autor consegue imprimir em seus personagens – tanto criminosos quanto vítima – um nível emocional intenso, e apesar dos elementos simples da trama, constrói suas cenas com precisão, e deixa qualquer um arrepiado. Uma ótima pedida se você acha que crime nem sempre é homicídio.

Liv: Os Crimes de La Fontaine  (Arnauld Delalande)

Já no primeiro parágrafo, o livro é sangrento. A história acontece na França iluminada de Maria Antonieta, onde um serial killer vai matando membros da corte baseados nos contos de La Fontaine. Para cada corpo, um conto com direito à cenas de crime bizarras e chocantes. Cabendo então, ao serviço secreto francês tentar resolver o problema, que pode levar até a uma possível espionagem internacional. O livro é inteligente, divertido e assustador. Com certeza você vai ficar sem ar algumas vezes até o fim dele, pois a história de Delalande te prende até a última página, assim como os contos de La Fontaine.

Dindii: A Sangue Frio (Truman Capote)

O clássico “romance sem ficção”, como é chamado, narra a história do assassinato brutal da família Clutter, formada por um casal e dois filhos. O trágico evento ocorreu no fim da década de 50 e motivou Capote a viajar até Holocomb, cidade em que a chacina acontecera, e conversar com vizinhos e amigos das vítimas. Além disso, o autor teve a oportunidade de passar mais de um ano em convívio com os assassinos Perry Smith e Richard Hickock, conseguindo estabelecer forte relação com eles.  O resultado de tantas pesquisas e entrevistas é um livro repleto de detalhes, com perfis psicologicos exaustivamente analisados (chegando a até passar pela infância dos assassinos) e, ao mesmo tempo, certa sensibilidade e crítica sobre os eventos descritos.  A Sangue Frio não é somente o relato de um assassinato, mas sim uma tentativa de entender a conturbada mente de um ser humano capaz de cometer tamanha atrocidade. Vale lembrar que Truman Capote não gravava ou fazia qualquer tipo de apontamento durante suas conversas e entrevista. O livro relata o que sua mente apreendeu e desenvolveu.

Lucas: Mistério no caribe (Agatha Christie)

A ‘rainha do crime’ constrói uma ótima história com a carismática velhinha, Miss Marple e sua argúcia investigava entrecortadas pelas tardes de tricô. Nessa história ela se encontra na ensolarada ilha de Santo. Honoré, nas Antilhas, quando um assassinato ameaça tirar o sossego do lugar. Um dos méritos desse livro é seu ritmo, pois o assassino é ‘obrigado’a silenciar aqueles que se aproximam de desmascará-lo em suas investigações. Assim, a história ganha uma tensão adicional, pois enquanto o autor das mortes não for pego, todos a seu redor que ousarem especular em busca da verdade estão ameaçados. Agatha Christie torna a paradisíaca ilha o cenário de uma história macabra que sequestra o leitor. As investigações e a epifania final são de um refinamento intrincado que repousa na condução meticulosa e minimamente orquestrada da autora, fazendo jus ao título que lhe foi concedido.

Anica: Hamlet (William Shakespeare)

Enquanto todos repetem a pergunta “Ser ou não ser, eis a questão?” paira a dúvida: Rei Hamlet foi realmente assassinado pelo irmão Cláudio, em um plano para roubar o trono da Dinamarca e a esposa Gertrude? Ou tudo não passa de ilusão de um príncipe que não aceita o fato de que a mãe seguiu adiante com a vida? “Há muito mais entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia”, sim, mas há muito mais em Hamlet do que essas eternas citações descontextualizadas. Uma história cheia de crime e círculos de vingança, começando no filho que tenta vingar a morte do pai e que para tal causa o fim da vida de outras tantas personagens, em uma trama em que nada é por acaso e que a todo momento nos lembra “estar preparado é tudo”. Hamlet merece uma leitura sem o peso de diversas interpretações, das ‘n’ citações. Merece ser lido como é: uma das melhores peças de Shakespeare e muito provavelmente uma das melhores escritas em língua inglesa.

Palazo: Gangster Americano (Mark Jakobson)

O livro de Mark Jakobson talvez fuja um pouco dos livros dedicados exclusivamente a um caso policial, isso por que o jornalista relata outras tantas histórias de Nova York além da história da que dá nome ao livro e ao filme estrelado por Denzel Washington (Frank Lucas) e Russel Crowe (Richie Roberts). Mas é exatamente a história do gangster Frank Lucas, que dá a cor ao livro. Através de um relato jornalístico literário, Mark Jacobson nos trás para dentro da vida de Frank Lucas, do tráfico de drogas e de toda sua ascensão ao poder, nem que para isso fosse necessário eliminar seus concorrentes. Nada como uma concorrência leal, certo? Para aqueles que ainda duvidam do poder do jornalismo literário em histórias como essa, vale a pena ler o prefácio em que Mark Jacobson relata seu encontro com Frank Lucas em um bar soturno, cheio de capangas, para discutir como dividiriam o dinheiro proveniente do filme. Um relato inquietante e de dar medo, sem dúvida um belo ingrediente para uma história recheada de crimes, drogas e sangue.

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