“Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer “a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada.” Começo a minha coluna, citando essa clássica passagem de Dom Casmurro para falar sobre vontades (prometo explicar melhor adiante). Meu primeiro contato com Machado de Assis foi através de Dom Casmurro quando tinha cerca de 13 anos. O livro me foi passado como um dever da aula de português da minha escola. Nessa época, eu e quase todos os meus amigos líamos quase que somente o que éramos obrigados pela professora, natural entre os primeiros frutos de uma geração que crescia entre computadores domésticos e videogames. Eu ainda tive a opção de viver entre tecnologia e brincadeiras de rua, numa cidade tranquila do interior, ou seja, tinha bastante distração para ficar longe dos livros, mas agora se eu quisesse uma nota satisfatória (e, com isso, o direito de não ter meus jogos e saídas com amigos vetadas), teria que encarar mais aquela leitura.

Preciso assumir que detestei. Todos os dias, tinha que me deparar com um personagem ranzinza que de tudo reclamava e adorava usar palavras difíceis. Desconfiava que Machado de Assis tinha um certo prazer em dificultar a minha vida e que existia uma conspiração internacional que só dizia que o livro é bom pra parecer cult. Olhos de ressaca? Cigana oblíqua e dissimulada? Gente, deixa a mulher então, que droga! Da minha memória literária da época (e excluindo os quadrinhos), só consigo salvar o Pedro Bandeira. Esse sim sabia conquistar a gente. Os Karas eram incríveis. Miguel, Crânio, Calú, Chumbinho e Magrí ficaram registrados na minha memória. Também posso agradecer ao Lewis Carroll por Alice no País das Maravilhas, livro que me acompanharia (e acompanha até hoje).

Mas o assunto dessa coluna é sobre vontades. E como esse fluxo nostálgico de pensamento se relaciona com tudo isso? Bom, passado algum tempo, tive que ler Dom Casmurro novamente e a coisa começou a ser diferente. Alguma coisa ali começou a me atrair, assim como fui atraída antes pelo Pedro Bandeira e Lewis Carroll. Aliás, vários livros começaram a me atrair. Será que eu tinha amadurecido, então? De repente, eu adorava aquela frase que citei logo no início do texto e simpatizava com o Bento. O tempo foi passando e outras leituras começaram a me agradar cada vez mais.

Acho que o meu surto literário aconteceu entre o fim do ensino médio e primeiro ano de faculdade. Isaac Asimov, Mia Couto, Douglas Adams, William Gibson, Vladimir Nabokov, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Edgar Allan Poe (e a lista continua). Apesar de continuar gostando da rua e dos videogames, ler se tornou algo inseparável de mim e acho que isso se deve ao fato de eu ter percebido o que todo livro possui: Vontades. Num livro, todo mundo é alguma coisa e busca alguma coisa. Os filmes, que me atraiam muito antes disso, também funcionam assim, mas os livros evidenciam as vontades muito mais e de forma psicológica.

O Bento era obcecado pela vontade de descobrir a verdade sobre uma traição, assim como Alice era tomada pela vontade de obter respostas e sair daquele mundo paralelo. Os Karas queriam salvar o mundo e era por isso que eu gostava tanto deles. Que criança não compartilha dessa vontade de ter poder de mudar as coisas, de criar suas próprias regras? Muito tempo depois, ao conhecer os manuais de Robert Mckee sobre roteiros (e que se aplicam, muitas vezes, a qualquer tipo de narrativa ficcional), a coisa fica até meio óbvia. Segundo ele “Stories are the creative conversion of life itself into a more powerful, clearer, more meaningful experience. They are the currency of human contact.”

Nenhum dia é banal nos romances. Livros são recortes em que todo fato conduz a história a algum lugar. Não existe tédio ou dia perdido. Existem sim seres observadores, impulsivos e que transbordam vontades. Mia Couto, por exemplo, é um exemplo de autor mestre em criar personagens cheios de vontade por entender a vida. Não tem como não se encantar.

Todos nos buscamos alguma coisa. Somos domados de vontades e esse é dos fortes elos de identificação pessoal com um personagem ou um livro. Não que você compartilhe dos objetivos de um personagem, mas sim de sua força e do seu sentimento de busca. É isso que torna, na minha opinião, o ritual da leitura tão importante.

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