Faz parte do ato de ser um leitor possuir hábitos arraigados de leitura, e uma das partes mais legais disso é justamente compartilhar um pouco delas: suas manias, cacoetes e costumes relacionados a livros e à leitura. A idéia dessa série de artigos é justamente relatar as idiossincrasias bibliófilas de cada um, promover o diálogo entre as diferentes opiniões sobre livros e leitura, e, porque não dizer, conhecermos um pouco mais sobre os hábitos leitores de cada um, uma vez que todos temos certos “procedimentos” que regem nossa leitura.

Creio que todo leitor tem suas próprias manias e seu próprio modus operandi quando se trata de livros. Eu mesmo as tenho aos punhados. Poderia fazer um texto aqui que explorasse minha compulsão por coleções, como eu adoro tê-las (e lê-las, obviamente) e contemplá-las perfiladas na estante, com suas lombadas uniformes e o aspecto de ordem que essa disposição lhes confere. Poderia falar sobre os acompanhamentos culinários à leitura, entre os quais o café seria o protagonista; mas me deterei hoje em relatar um cacoete meu que vocês talvez já tenham notado, que é o que eu gosto de chamar de leitura bordejante.

Tanto quanto ler a opus magnus de cada autor, gosto de explorar suas obras menos conhecidas, de modo que, antes de encarar uma obra de maior monta, reconhecidamente clássica, eu prefiro ir bordejando e lendo as obras de “segundo plano”, aquelas que somente os leitores que se apaixonaram ao clássico irão buscar e, não raro, sentir-se meio decepcionadas com relação a ela, visto que a estarão explorando a sombra da obra prima. Foi assim que conheci Olhai os lírios do campo e Incidente em Antares antes de adentrar em O tempo e o vento; ou como li Os sofrimentos do jovem Werther antes de encarar Fausto.

Embora eu adie muitas vezes a leitura do clássico para encarar primeiro as demais obras do autor, o processo contrário muitas vezes acontece e acabo bordejando às avessas, um bordejar pós-obra prima. Foi assim que depois de Moby Dick, fui atrás de Bartleby (que nem é assim tão desconhecida) e de Mares do sul. O mesmo se deu com O grande Gatsby, leitura a que se seguiram, por exemplo, Seis contos da era do jazz e Os belos e os malditos.

Talvez eu deva ampliar aqui a noção de leitura bordejante: minha mania não se dá somente em relação à obra prima e obras menos conhecidas, mas em relação a toda a produção de um autor. Quando começo a ler um autor de quem gosto, procuro a exaustão ler toda a obra dele. Minhas obsessões ultimamente tem sido John Steinbeck (até por conta da minha pesquisa de Mestrado, que lida com alguns romances dele) e Franz Kafka (que vocês devem ter notado a recorrência de resenhas de seus escritos).

Explico-me: a leitura de diversas obras de um mesmo autor conseguem desenhar um panorama mais abrangente, que permite identificar recorrências, idiossincrasias, obsessões, questão não resolvidas, temores, cacoetes, repetições, permanências e rupturas. Assim, mais do que ter uma única imagem, estática; você tem a possibilidade de sobrepô-las e fazê-las se mover, como numa película cinematográfica. Ao ler várias obras do mesmo autor, além de aprofundar seu conhecimento sobre o universo de significados desse, você consegue torná-lo mais humano, conhecê-lo em suas particularidades, concebê-lo (como é a própria “natureza” histórica dos homens) como um ser em movimento, mudando, transformando-se dialeticamente, onde convivem o que ele foi, o que ele é e o que ele anuncia que será.

Entre as vantagens dessa mania, destaco o preço. Você dificilmente irá encontrar um Dom Quixote por um preço convidativo, mesmo os sebos se acautelam nesse sentido; mas certamente encontrará O casamento ardiloso ou Novelas exemplares por preços bem mais amigáveis. O fator número de páginas tem seu peso nesse caso, mas basta olhara para outros exemplos para notar isso, vide A insustentável leveza do ser e obras mais “obscuras” de Kundera, tais como A imortalidade, A brincadeira ou Risíveis amores.

O “movimento” que a leitura de várias obras proporciona deixa o leitor enxergar além do cânone, e acaba por transformar aquele autor-monumento, às vezes meio distante, em um ser humano de carne e osso, que tinha seus próprios medos e angústias, felicidades e realizações e suas próprias razões sobre o porque e como escrever. Alguns talvez possam preferir manter os monumentos em pé, de minha parte digo que prefiro muito mais descobrir o que lhes há de humano, misto de perfeições e imperfeições, que, apesar de todas as limitações  transgrediu ou transcendeu de alguma forma.