Fui empolgado para conhecer a obra do argentino Alan Pauls, História do cabelo (2010), que, aliás, faz parte de uma trilogia sobre a Argentina da década de 70 cujos demais títulos são História do pranto (o primeiro, lançado em 2008) e História do dinheiro (a ser publicado). A edição que saiu pela Cosac Naify é digna de menção pelo tratamento caprichado que lhe deram.
História do cabelo conta sua história a partir de um personagem obcecado por seus rituais capilares, suas idas aos cabeleireiros, suas preocupações com a calvície, com os penteados, xampus, condicionadores, etc. Parece ser um plot meio insosso, mas justamente pelo fato desse cabelo estar preso a um ser humano, a história consegue ser interessante e ter um enredo que lida com as reverberações cotidianas e individuais de um período conturbado da História da Argentina.
O livro de Alan Pauls não conta com diálogos, o narrador toma conta da história e pouco deixa seus personagens falarem além do estritamente necessário, o que não constitui necessariamente um diálogo, mas pensamentos integrados no corpo do texto. A narrativa toma conta das páginas, com frases longas e intrincadas, que o autor admite serem fruto de sua “incapacidade” de se portar literariamente como Hemingway.
Tal qual tudo o que está ligado ao homem, o cabelo está condicionado constantemente pela História, pelas modas e estilos que se sucedem, ganhando significados diversos em diferentes contextos e sociedades. Alan Pauls explora essa historicidade capilar através de diferentes penteados, como os cabelos compridos, as costeletas, as cabeleiras disco entre outros penteados ousados. As mudanças no cabelo do protagonista, cujo nome não nos é informado, acompanham as tendências e adquirem diferentes sentidos tanto individual quanto coletivamente.
Apesar de em alguns momentos o livro ficar mais estático por conta das divagações alongadas (principalmente por conta de centrar-se intensamente sobre aventuras e desventuras em cabeleireiros e técnicas) Pauls mantém a elegância do início ao fim. A pompa e a dramaticidade com que rituais relativamente banais (como sentar-se na cadeira do salão, ter as madeixas lavadas e enxaguadas ou o barulho de ‘tic-tic-tic’ da tesoura etc.) são encarados, às vezes soa exagerado, mas não se pode dizer que a escrita do autor se perca ou que seja truncada.
Pauls afirmou a respeito dos intentos da trilogia: “Tratar dos anos 70 por meio de um guerrilheiro, de um verdugo, seria óbvio. Desse modo, consigo falar dos temas que a época me sugere com um enfoque diferente.” O autor buscou uma forma diferente para tratar desse intrincado período da História da Argentina, e os próprios personagens que o protagonista vai encontrando vão refletindo as trevas da época, como o amigo que morre de câncer (cuja reação à fatídica notícia é pungente) ou o veterano de guerra desorientado pela situação do país pelo qual arriscou sua vida.
No livro Represálias selvagens, o historiador Peter Gay escreve que o romancista encontra-se em uma posição privilegiada para falar a respeito de si e do mundo que o rodeia, sendo, portanto, profícua fonte para compreender não só o indivíduo como a sociedade histórica na qual está ele inserido; ele diz que
“(…) o caminho mais promissor para a verdade reside em sua capacidade [do romancista] de se mover entre (…) o macro e o micro, sociedade e indivíduo.” (p. 150)
A partir dessa passagem pode-se perceber que, além de Pauls estar nessa fronteira indivíduo-sociedade, ele vai além, e estuda o cabelo, elemento do indivíduo, mas em consonância (ou dissonância, dependendo do caso) com a realidade que o cerca. O cabelo não é o personagem principal, conquanto às vezes o pareça, ele é o indicador, o dispositivo que permite que os demais elementos a ele se aglutinem e constituam o miolo e o enredo da história, desvendando outras facetas do período.
História do cabelo apresenta uma história interessante, um pano de fundo prolífico e uma execução elegante embora às vezes muito pomposa. Mas quem sabe esses comentários sejam apenas reinações de um leitor (aspirante a escritor) verborrágico e com preocupantes entradas em seu cabelo.
Estava pensando em dar esse livro de presente pra minha mãe, que é cabeleireira e adorou o último livro que dei de presente pra ela (“Metamorfose”). Não sei por que juntei esse livro ao Kafka, vai ver que pela “modernidade” da narrativa. Mas enfim, só para dizer que agora decidi de vez dar esse livro de presente. Quem sabe eu não acabo lendo ele depois?
Ótima resenha. Parabéns.
Obrigado Luara!
Não consigo estabelecer nenhum ponte entre as duas obras que tu citou, mas, bem, se é para ler, pode dar sem medo e sem receios. Particularmente prefiro o Kafka, mas o Pauls é bom também, sabe extrair um certo lirismo de coisas banais, transformar coisas sem graça em elementos transcendentais. Só não sei até onde isso é bom, porque oscilei em vários momentos, às vezes pensava: ‘Putz, esse cara é bom, tornou uma ida ao barbeiro em uma epopéia’ mas às vezes pensava assim: ‘Putz, foi só um corte mal feito, whatever, não tem necessidade de tanta dramaticidade’.
Mas de qualquer maneira é uma leitura interessante, pode ir tranquilamente para o livro.
Acho que não me expliquei bem. Não quis comparar Pauls e Kafka, mas na minha cabeça se alguém se dá bem com Metamorfose pode se dar bem com alguém escrevendo sobre os dilemas do cabelo. É como se fosse uma ficção menos realista, e por isso mesmo mais difícil de ser encarada hoje em dia.
De qualquer forma, pode ser um bom presente!
É, acho que dá pra pensar assim.
De qualquer forma, seja ‘Metamorfose’ seja ‘História do Cabelo, você irá encontrar boas histórias, por motivos bastante diferentes.