Seguindo meus rituais de leitura, bordejei a obra do autor norte-americano Jerzy Kosinski e fui ler O pássaro pintado depois de ter lido O videota. O livro foi publicado em 1965 e causou controvérsia a respeito da credibilidade que deveria ou não ser atribuída ao autor quando esse tratou eventos tão espinhosos, como o Holocausto, o nazismo e os costumes de grupos tão vilipendiados e atemorizados como os judeus, ciganos e demais populações do leste europeu que sofreram com o avanço da Alemanha nazista.

O romance em questão conta a história de um jovem que é enviado pelos pais, através de uma pessoa de confiança, para uma nova família que não estivesse ameaçada pelo nazismo. Ocorre, porém, que percalços se interpõe nesse traslado e o garoto passa a habitar uma vila onde, devido a cor escura de seus cabelos e de seus olhos, ele se torna persona non grata e passa a ser tratado com crueldade e desconfiança pelos moradores, que chegam, inclusive, a considerá-lo um cigano.

Diante da nada acolhedora condição que experimenta, o jovem logo encontra uma rota de fuga, deixando para trás o vilarejo e a companhia da velha feiticeira que o abrigava em sua casa. O movimento que o tirou dessa vila e o impeliu para outras é somente o primeiro passo de uma jornada errante que se estende por todo o livro. As vilas e seus moradores se sucedem, acompanhados de maus tratos, desconfiança, experiências novas, sofrimentos, novos conhecimentos práticos e mais eventos de truculência e horror protagonizados pelas tropas nazistas.

É assim que o jovem conhece Lekh, o apanhador de pássaros, que executa experiências macabras com alguns dos pássaros que captura: ele os pinta de outras cores e os liberta, para em seguida ver como os outros membros de seu grupo, que outrora eram-lhe amigáveis, o estraçalhem em poucos momentos. A estadia com Lekh é muito significativa, pois elucida o título do livro: o jovem cuja história nos é apresentada se assemelha aos pássaros pintados, que são tidos como estranhos pelo grupo que supostamente deveria estar ao seu lado, uma vez que seu inimigo é comum e eles partilham a condição de ameaçados e oprimidos.

Como pássaro pintado o jovem segue, passando de vilarejo em vilarejo, sendo usado como instrumento de tortura e de sadismo, cobaia de experiências sexuais, vítima de ataques hediondos de tropas nazistas, trabalhador encarregado de tarefas cotidianas, crente e descrente da fé religiosa etc. O ritmo acelerado das mudanças e perambulações não impede Kosinski de construir um nível de detalhamento e de crueza que tornam o livro a um tempo atraente, pesado e sinistro.

Beirando a surrealidade, O pássaro pintado é uma fábula mórbida sobre as reverberações cotidianas do nazismo e dos horrores proporcionados pela Segunda Guerra Mundial. O mérito do livro, a meu ver, é justamente esse: trazer à tona essa faceta menos conhecida dos impactos da guerra nas populações civis, que a seu modo experimentaram a amargura desse período tanto quanto os soldados no front de batalha.

Na sucessão de cenários e situações, confesso que me lembrei do episódio V de Star Wars. Não que a trama de ficção científica tenha algo a ver com a errância do jovem acusado de ser cigano pela Europa sitiada pela guerra, mas é que a forma como os eventos vão se sucedendo e como a exploração dos cenários e das situações ganham o tom de aventuras (ainda que pungente e violenta) fizeram aflorar essa memória na minha cabeça.

Talvez a referência mais adequada aqui seja o chocante filme Vá e veja (Idi i Smotri), do diretor Elem Klimov, de 1985. Retratando a insanidade e o horror da Segunda Guerra na Bielo-Rússia, o diretor alçou a jornada de Florya ao status de epopéia trágica. De maneira similar, Kosinski fez da história do jovem protagonista uma espécie de bildungsroman forjado nas infernais fornalhas da guerra.

Ao passo que sataniza toda e qualquer ação das forças nazistas (não poupando descrições escabrosas dignas do tremendismo de Camilo José Cela), Kosinski localiza seus heróis nos soldados do Exército Vermelho, que acolhem os habitantes dos vilarejos assediados pelos nazistas e lhes proveem suporte médico e de gêneros básicos.

Tenho um apreço bastante grande por esse livro, pois embora ele se detenha sobre uma trajetória individual, consegue encontrar ressonâncias históricas de um contingente gigantesco de sujeitos que foram acabrunhados com o fardo da guerra. Foi ao explorar a guerra no cotidiano que O pássaro pintado me conquistou, pois descortinou uma das faces mais horrendas da guerra em minha opinião, que é expandir a “ordem belicosa” nos mais inimagináveis rincões da realidade.