Considerando que trata-se de uma antítese da utopia, a distopia carrega consigo todos os valores negativos que se poderia imaginar em uma sociedade. O governo de uma distopia normalmente é totalitário e valores como a liberdade e a identidade são itens de museu. Por conta dessas questões, a distopia surge na literatura como uma fonte de crítica a muitos dos elementos que a sociedade contemporânea traz, através de situações mais hiperbólicas chama a atenção para problemas que alguns preferem não questionar.

A distopia na literatura não é algo recente, especialmente se considerarmos que mesmo A Máquina do Tempo de H.G. Wells pode se enquadrar como tal. É bastante explorada no campo da ficção científica, mas pode aparecer em outros gêneros, como a fábula A Revolução dos Bichos, de Orwell. A partir de um número vasto de obras que trazem o tema, escolhemos algumas para quem deseja embarcar nessa visão crítica do que podemos ser (ou do que já somos).

KikaFahrenheit 451, Ray Bradbury –  Um mundo em que as casas não pegam mais fogo, as paredes da sala são ocupadas por TVs gigantes, nas quais uma programação interativa aliena mais e mais a população, e onde livros são subversivos. Neste mundo, o trabalho dos bombeiros é queimar livros. E livros queimam à temperatura de 451 °F. Nesta Terra onde pensar é antissocial, Guy Montag (bombeiro) conhece Clarisse, uma garota de 17 anos, questionadora, leitora, única. Ela, Dr. Faber e alguns livros levam Montag a questionar sua realidade. O que me atrai e me assusta neste livro, é a proximidade com nossos dias. Claro, hoje não há uma proibição da leitura, mas um desinteresse por ela, a ponto de haver pessoas que se orgulham por “nunca terem lido um livro”. Bradbury consegue nesta obra imaginar uma vida sem eles, e não é uma vida que eu quereria viver…

Liv1984, George Orwell –  Assim como em Fahrenheit 451, pensar é um ato perigoso. A história de George Orwell se passa em um algum lugar do futuro, onde os seres humanos sofrem os erros cometidos em algum lugar do passado. No protagonista Winstom Smith temos uma fagulha questionadora em relação à opressão da presença do Grande Irmão e o que ela significa para a sociedade, que vai desde à mídia até o pensamento da população. Qualquer intenção contra essa presença é vaporizada sumariamente, sem que nenhuma pessoa sequer lembre dos fatos. Se o Grande Irmão diz que um fato é ‘assim’ é porque ele sempre foi ‘assim’ e ponto final. Com esse livro, George Orwell nos mostra que nem sempre o herói consegue vencer o vilão, e que nosso pensamento não é tão livre quanto gostaríamos que fosse.

Anica: Nós, Yevgeny Zamyatin – Embora desconhecido por muitas pessoas, esse livro pode ser considerado o avô (e por que não pai?) do famoso 1984 de George Orwell, que reconheceu ter se inspirado nessa obra de Yevgeny Zamyatin escrita no começo do século XX. Muitos dos elementos já conhecidos e discutidos nas distopias mais populares estão lá. O controle do governo, a falta de identidade, a falsa noção de liberdade que vem com a ignorância do “mundo lá fora”. A história é narrada por D-503 em uma espécie de diário, e vamos acompanhando gradualmente seu despertar para a realidade em que vive. É uma obra emocionante, questionadora e cativante, que prende a atenção do leitor do começo ao fim. E até por isso é realmente uma pena que o livro não seja tão conhecido aqui no Brasil (onde ganhou duas traduções, uma chamada “Nós” e outro “Muralha Verde”).

DindiiAdmirável Mundo Novo, Aldous Huxley – Publicado em 1932, a narrativa acontece em um futuro indeterminado em que os principais valores da sociedade foram alterados. As pessoas vivem em uma sociedade organizada por castas e são condicionadas a seguirem as leis que regem esse mundo. Nesse ambiente, não existe a concepção de família, religião e arte. As crianças são ensinadas através da hipnopedia, espécie de aprendizado sonoro que acontece durante o sono. Através desse método, elas são influenciadas moralmente e aprendem os comportamentos que deverão seguir por toda a vida. Além disso, ainda na fase embrionária, o indivíduo já tem o seu destino traçado: classes baixas são produzidas em série com limitações mentais e físicas, enquanto que classes mais altas são produzidas de forma mais refinada. Huxley propõe uma realidade futura bastante pessimista, que muito lembra as tragédias gregas do passado no que se trata das temáticas do destino e liberdade, mas a diferença aqui é que não são os Deuses que definem a vida, mas sim a tecnologia.

TiagoLa literatura nazi en América, Roberto Bolaño – Seria essa bio-bibliografia dos escritores nazi-fascistas do Novo Continente uma distopia? Olhe com atenção. Algumas datas – escritores mortos em 2030? livros com lançamento posterior ao texto escrito nesta enciclopédia? a fama que chega antes da obra? – dão alguma pista de que algo está errado, que algo vai mal. O que sonha os autores aqui canonizados? O que imaginam os escritores que se associam a Hitler ou a Mussolini aqui na América? Não, eles não sonham com a utopia ariana. Não lutam por sociedades organizadas, nem com o Homem Novo. Leram muito bem as ficções-científicas de Philip K. Dick, de Norman Spinrad e de Alfred Bester para saber onde isso vai dar. Todos eles são no fundo uma trapaça. Sonham no fundo com um mundo literário. Não, não com um mundo ficcional – um mundo literário, do qual eles possam participar. Com festas, com boas críticas, com respeito de seus colegas, com saraus de leitura. Sonham com uma liberdade e sonham em serem escritores num mundo de escritores. Toda a distopia é familiar, não é mesmo? Até que vem Carlos Ramírez Hoffmann, com sua poesia-aérea e a arte-performance da tortura, e mostra como tudo isso é possível. E caímos no inferno. Sem pára-quedas.

LucasLaranja Mecânica, Anthony Burgess – Acho o livro do Burgess uma das visões mais assustadoras sobre a esperança que algumas pessoas insistem em querer fazer repousar sobre a tecnologia e algumas concepções demasiadamente biológicas sobre o homem. O tratamento a que o jovem Alex é submetido (o Método Ludovico) tem um desfecho tão aterrorizante quanto os atos de delinquência que o levaram a ser detido. A reprogramação biológica feita a revelia de humanidade se manifesta num comportamento arredio, perturbador e longe de ser saudável. Ironicamente, o método que o deveria corrigir acaba tornando-o mais socialmente desajustado que outrora. Burgess consegue criar um clima mórbido de inumanidade kafkiana onde o leitor se sente desconfortável, como o expectador de um espetáculo sinistro. O livro tem como “bônus” ainda um glossário de expressões “horrorshow” do dialeto falado pelos jovens das gangues e descrições das sensações causadas pelas composições de Ludwig Van Beethoven que são de uma beleza memorável, profundamente contrastante com o clima pesado do livro.

LucianoO Processo, Franz Kafka – Joseph K., em seu aniversário de 30 anos, é visitado por dois homens que dizem que ele está preso. Deve, porém, permanecer em casa aguardando instruções. Mais tarde, quando vai ao tribunal, descobre que a coisa parece ser grave, mas não consegue descobrir qual seu crime. Não pode sequer alegar ser inocente, pois não pode responder a pergunta ‘inocente de quê?’ que lhe é lançada como resposta. Fosse apenas esse seu tormento, mas tudo se torna cada vez mais bizarro: um advogado que humilha os clientes por sua subserviência, os agentes sendo açoitados por terem lhe pedido dinheiro, um padre que ele nunca viu na vida lhe chamando pelo nome e explicitando quão pouco esperança ele deve ter quanto a seu processo. Apesar de alguns poderem discordar sobre a novela de Kafka ser ou não uma distopia, acredito que os principais elementos estão aí, de forma bastante terrível: um estado (ou uma instância burocrática superior, pelo menos) totalitário e autoritário, com o qual não se pode argumentar; e um completo desprezo não apenas pelos direitos do indivíduo mas por toda a lógica vital que suporta a própria noção de mundo deste indivíduo.

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Quer saber um pouco mais sobre os livros comentados? Confira então o que já foi publicado no Meia Palavra: