A ligação entre a pintura e a literatura, ao menos no campo teórico e conceitual, não é uma novidade – ao contrário, já é algo que está um tanto desgastado e que não se vê mais com tanta frequência. Já foi, porém, uma relação deveras frequente e que rendeu frutos muito ricos: as teorias de Charles Baudelaire acerca da modernidade e a teoria da Pura Forma de Witkiewicz foram aplicadas, em primeiro lugar, à pintura e depois, muitas vezes sob a forma de comparação, às letras.
Isso talvez ajude a elucidar o complexo caráter meta-artístico de A coleção particular, do francês Georges Perec. O conto (convencionemos chamá-lo assim, apesar de o assunto ser algo controverso, que suscitaria dezenas de escritos) é um relato sobre a história de um quadro.
Não se trata, porém, de um quadro qualquer: Humbert Raffke, rico industrial cervejeiro alemão radicado nos Estados Unidos, tornou-se colecionador de arte e, viajando pela Europa, acumulou um acervo notável de pinturas, além de ter patrocinado outros tantos artistas. Depois de a coleção ter adquirido um corpo volumoso, Raffke encomendou uma pintura em que se retrata sua coleção, quadro homônimo com o conto.
O responsável por essa obra foi o pintor Heirich Kürz. Nela via-se Raffke observando sua coleção. No centro da tela era o próprio quadro quem aparecia, com um pequeno e subversivo detalhe: a disposição dos quadros era distinta. E a obra aparecia inúmeras vezes – cada vez menor e cada vez com uma nova organização.
A edição publicada pela Cosac Naify também traz um segundo conto, chamado A viagem de inverno. Agora a vocação metaliterária é explicitada, já que Perec narra, em suficientes sete páginas, a saga do professor de literatura Vincent Degräel ao encontrar um volume escrito por um tal de Hugo Vernier – escritor de quem nunca ouvira falar.
O livro de Vernier chamava-se, evidentemente, A viagem de inverno, e narrava, com lirismo excepcional, uma viagem a um país desconhecido. A obra impactou tremendamente o professor, que passou a estudá-la atentamente.
Não lhe passaram desapercebidos detalhes como o fato de ter citado Mallarmé, Gustave Kahn, Verlaine e outros. Isso, porém, tornou-se surpreendente quando descobriu a data da impressão do livro: 1864. Isso fazia com que, na verdade, esses autores é que tivessem citado Vernier, e não o oposto.
A partir dessa descoberta a vida de Degräel torna-se uma obcecada e infrutífera busca por detalhes biográficos e bibliográficos a respeito de Hugo Vernier.
A reunião dos dois relatos em um só volume não é mera coincidência. Com um pouco de exagero, aliás, pode-se dizer que é providencial, já que ambas versam a respeito da ilusão da arte. Com uma escrita desprovida de sentimentalismo – mas ainda assim, poética a seu próprio modo – Perec aponta para a importância da mentira, não apenas no ato criativo, mas também na apreciação de seus produtos.
A coleção particular
de Georges Perec
tradução de Ivo Barroso
88 páginas
R$ 42,00
Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Editora Cosac Naify
Já leu outro do cara, seu Luciano?
Li apenas “A vida: modo de usar” (tenho a primeira edição, lindona) e gosto demais desse livro.
Veja a coincidência: acabei de comprar esse livro, num revival mental da obra de Perec. Comprei não só esse, como também o A arte de abordar seu chefe e pedir um aumento (algo assim). Ainda não chegaram em casa. Peguei emprestado na biblioteca pública o “Um homem que dorme”, antigaço. Também tem lá o “As coisas”, antigaço e esgotadaço. Eu gosto de coincidências, mas a de que VOCÊ leu um dos livros que em breve lerei não parece ser só coincidência, mas um bom sinal.
Evitei ler a resenha. Como não li sequer a quarta capa lá no sebo do Joaquim, mantenho-me virgem de ideias sobre o livro antes de lê-lo. Mas depois lerei, pó deixar.
Acho legal que a Cosac tenha dado o nome desse livro à coleção de livros fininhos com projeto gráfico bem diferenciado (entre os quais, o Bartleby de Melville).
Ah… a ficção…
Li o livro e adorei. Acho que qualquer um que tiver passado pela obra-prima do autor, vai identificar vários pontos em comum entre essa novela e esse conto e A vida: modo de usar.
HÁ, LUCIANO RESENHANDO UM FRANCÊS.
Então, comprei esses dias esse livro do Perec por uma promoção da Cosac. A tua resenha só me deixou mais interessado pra ler. Não li outras obras dele ainda, mas achei interessante você falar da “escrita desprovida de sentimentalismo”, ainda que você usou a palavra “sentimentalismo”, e não “sentimento”. Escritores como Perec, de grupos mais experimentais como a OuLiPo (ou o nouveau roman), eram constantes alvos de ataque de críticos que os chamavam de “formalistas”, mas com obras como “A coleção particular” dá pra perceber (pela tua resenha) que se trata exatamente do contrário: tudo é subjetivo nessa literatura.
Enfim, me empolguei no comentário. haha
Ah, Arthur, “As coisas”, que você citou, tá na minha lista de leituras futuras também.
Abraço! E parabéns por mais uma resenha boa, Luci.
p.s.: quis dizer “ainda MAIS que você usou a palavra…”
Vocês dois, bitches, leiam AGORA “A vida: modo de usar”.
É um “A coleção particular” em tamanho de catatau!
=)
“A vida modo de usar – remances”, o tenho em português e em francês; a última versão, para tirar certas dúvidas em relação ao modo de ser traduzido (tenho considerável dificuldade no domínio do francês e sua leitura corrente, mas uso o original com frequente teimosia). Um mundo fascinante quase borgiano. Admiro demais a capacidade de Perec ao tentar esgotar assuntos e a memória dos locais, como no caso da Place Saint-Sulpice no 6o arrondissement; ao descrever exaustivamente em menos de um dia e num sá local: “o que acontece quando nada acontece além da passagem do tempo, das pessoas, dos carros e das nuvens”; crônica estendida estende por quase sessenta páginas. Ou mesmo a peregrinação maluca de Perec fazendo o trajeto da igreja de Saint-Eustache, em Les Halles, até a igreja de Saint-Paul, no Marais, percorrendo apenas ruas cujos nomes iniciem com a letra “p”. Façanha que tentarei repetir amanhã, porém no sentido inverso, já que me encontro em Paris numa temporada cujo objetivo principal é de melhor conhecer o misterioso mundo perequiano e, por conseguinte, o universo de Raimond Queneau. Hoje fui conhecer a estação de metro da linha 5, e a rue Raimon Queneau: decepcionante logradouro de 144 m de comprimento e 16 de largura, a nos levar a lugar algum, contudo dotada de aspectos únicos como sua obra. Dois gênios da literatura mundial da segunda metade do século XX.