Antes de tudo, espero que fique claro que Queneau não pensava como eu e você pensamos. Ainda que pareça brincadeira, há uma certa verdade em dizer isso. Raymond Queneau (1903-1976), membro da Oulipo (Ouvroir de Littérature Potencielle), foi um dos escritores mais prolíficos e experimentais da literatura francesa, sendo autor de obras como Zazie dans le métro (1959), Pierrot mon ami (1942) e esses Exercices de style (1947) dos quais trato aqui. Esse livro é notavelmente obra do seu autor, pois temos aqui a característica básica da sua escrita e a dos outros membros da Oulipo (como Georges Perec e Ítalo Calvino): a exploração lingüística ao máximo sob limites pré-determinados. Parece não querer dizer nada, certo? Já vamos ver que diz e muito.

Os próprios Exercícios de estilo são um bom exemplo do projeto da Oulipo. Eles começaram a ser formulados para a diversão do próprio autor quando resolveu escrever de várias formas a mesma história: alguém sobe em um ônibus, vê um homem de aspecto peculiar ter seu pé pisado por outro e se sentar logo depois para então, mais tarde, já em outro lugar, observá-lo ouvindo conselhos de moda de um amigo. Só isso. Agora imagine isso reescrito 99 vezes. Queneau partiu da primeira versão (“Anotação”) e foi escrevendo outras (“Metaforicamente”, “Sonho”, “Insistência”), procurando exercitar especialmente suas habilidades como escritor sistemático em relação à língua e suas possibilidades infinitas (“Anagramas”, “Alexandrinos”, “Lipogramas”). Daí a idéia de “se limitar” em um objetivo para poder explorar todo o universo literário aos poucos. Porém, esse trabalho intelectual, erudito também tem sua graça, o que faz dele obra de Queneau, conhecido na França justamente por fazer rir. Ler uma história já conhecida escrita das maneiras mais absurdas possíveis nos faz rir de qualquer jeito. Pela diversidade dos Exercícios…, acredito que qualquer um se diverte com pelo menos um ou outro texto do livro (bom lembrar que existem até textos como “Geométrico” e “Botânico”). A tradução de Luiz Resende, muito bem planejada, também favorece o leitor brasileiro para se aproximar dos textos, já que houve um empenho para torná-los acessíveis, algo que o próprio Queneau, defensor do “neofrancês”, um francês mais popular, sempre pretendeu com a sua linguagem.

Esse trabalho aparentemente formal se mostra como um simples enredo pode ser contado de vários pontos de vista, a ponto de a própria história deixar de ser o enfoque, algo que aconteceu nesse livro e em toda a literatura moderna. O mergulho lingüístico e cultural que fazemos ao lermos os Exercícios… nos leva a pensar sob muita coisa, mas acima de tudo sobre a própria literatura. Ou melhor: pensamos na literatura como prazer acima de tudo, algo que ela nunca deve deixar de ser.