No fórum do Meia Palavra temos uma tradição de expor nossas metas literárias; como bons bibliófilos, queremos conhecer todos os livros do mundo e também alcançar novos patamares, desde aqueles que começaram com Cervantes em 2011 e nesse ano querem partir para Joyce. Outros querem se meter a desvendar as poesias polacas, enquanto alguns ainda se arriscam a conhecer os hai cais que, aparentemente, todo mundo conhece. Creio que essas metas, não só as literárias, mas também as de perder peso, fazer dinheiro, conhecer um amor, conseguir emprego novo e tantos outros lugares-comum, são uma pressão sem fim que acabam por fadigar os pagadores (credores ou fiadores) de promessas.

Poderia dizer que tenho metas literárias, mas o que realmente respeito são as minhas tradições no mundo das letras, uma espécie de Natal bibliófilo, ou seja, algo que tenho de fazer todo ano ou parece que ele nunca terminará. No final de 2005, quando comecei a ler “Grande Sertão: Veredas”, resolvi fazer a barba por completo – sem nenhum motivo aparente. Ao final da leitura, a minha barba tinha crescido mais uma vez (os milagres de não usar o barbeador). O jovem da primeira fileira, futuro crítico, pergunta: o que isso tem a ver com tradição? Ok, não se afobe. Acontece que desde aquele dezembro daquele ano ímpar, todo final de ano releio a magnum opus de Guimarães Rosa – não leio a mesma edição, tenho diversas desse livro -, mas não sem antes fazer a barba e deixá-la crescer durante todo o tempo de leitura.

Existe, ainda, um certo círculo vicioso – chamemos forçosamente de tradição? – que paira pelas linhas jornalísticas todo final de ano, ou em épocas festivas que param o país, chamado reportagens de gaveta – o natal se torna textos sobre descontos até aos primeiros nascidos do ano – que parecem tentadoras demais para serem descartadas numa coluna de final/início de ano, e são rituais midiáticos para liberarem grande parte de seus profissionais que, afinal, também são filhos de Deus, por duas semanas. Outro vício no solstício de verão são as listas! Não julgo quem faz listas de melhores/piores do ano, mas não me acrescenta muito recorrer a esse tipo de rememoração nesta época, apesar da tentação bíblica que ela oferece para eu poder aproveitar as festas de fim de ano.

Todos adoram apontar como maior defeito de uma obra que não presta, ou de qualidade inferior ao que o espectador/leitor/admirador está acostumado, o uso excessivo de clichês. Mas se pararmos para pensar, não seria o clichê a ferramenta ideal para ilustrar algo? Ou seja, se é clichê (e eu repeti a palavra) é porque funciona e depende somente do talento daquele que escreve para que seja imperceptível a ponto de enganar o leitor ou totalmente descarado para parecer irônico. Quando escrevo, gosto que as ideias fluam e mesmo que o texto pareça desconexo, a partir daquele amontoado de frases conseguirei construir algo. Só de pensar em algo para escrever e seguir esse pensamento ao invés de deixar os dedos se moverem, Ah! Como um escritor natural! (natural? será que é só colocar os dedos no teclado, envolver os pentacarpos numa esferográfica, que as histórias simplesmente saem?), e finalmente escrever algo que fuja do usual – do clichê de final de ano. Não sou adepto do fordismo literário, da ação mecânica do criar por criar para cumprir prazos apenas por cumprir prazos. Até falaria sobre os melhores e piores que li esse ano, dos filmes memoráveis e descartáveis – o que não acrescentaria em nada para mim, que já sei deles todos e não gostaria de lembrar dos piores (gostaria de esquecê-los, ou não, vai que preciso alertar amigos e militares de uma bomba no mundo das letras?).

Outro clichê da minha vida – na verdade gostaria que fosse uma tradição – que há tempos não utilizava resolveu embalar meu final de ano: uma rede de balanço. Sim! Um dos maiores prazeres para esse leitor que vos fala é justamente o balançar de uma rede em meio a um ambiente bucólico, com um livro na mão (nesse fim de ano Rosa ficou de fora e o eleito foi um exemplar de Murakami, o título vocês saberão quando sair a resenha) e uma brisa para deixar os pés inquietos. Devo dizer que esse pequeno prazer só se faz necessário porque durante muito tempo li em ônibus e metrô lotados ou em espaços curtos de tempo. Esse desligamento do tempo e espaço paulistanos, da obrigatoriedade (e dos prazos! prazos para prazos!), mostrou o quanto é bom desacelerar o ritmo. O vai-e-vem (como os textos bumerangues de final de ano) esvaziou a minha mente quando fechei o livro na página 100 – quase metade da obra – e comecei a pensar nas promessas de ano novo e nesse ponto, nessa virada, no meu clímax anti-clímax, percebi que não queria criar metas para o próximo ano – conspiradores do clima ou de profecias maias dizem ser o último da Terra.

E como ainda não realizei o ritual rosiano, a tradição, ou o que muitos diriam ser uma maldição, o ano ainda não virou para mim, estou preso em um não-tempo em uma espécie de tortura pessoal com esse clichê recorrente da minha vida. Com certeza poderei desdobrá-lo para outros caminhos – Travessia, diria o Grande Rosa -, muitos bons cristãos já trocaram o vinho pela Coca-Cola no Natal, e assim agregar novas manias para que o fio condutor, o clichê principal, se mantenha sempre atrativo sem perder a sua essência. Eu já tenho uma nova edição para ler. Por que não comecei? Talvez me falte comprar lâminas novas para o barbeador. Ou instalar uma rede em casa. Nonada.