Um eco continua e ninguém se dá conta até onde ele vai: se ao final da caverna, onde irá sumir, ou se atravessa as paredes rochosas feito uma alma penada para continuar. Aquele barulho que ouvimos no meio da noite, como estalos de madeira com a mudança de temperatura, seria apenas um eco de algo que está acontecendo em um lugar mais afastado? Ou seriam esses ruídos vozes perdidas querendo invadir um tempo que não lhes pertencem para contar-nos vossas histórias e as de muitos outros? Tudo pode ser real desde que se preste atenção nos estrépitos aliterados do romance de ecos Pedro Páramo, um dos dois livros escritos pelo autor mexicano Juan Rulfo – o outro é de contos – e tendo sua segunda edição pela BestBolso, lançada em 2011 com tradução de Eric Nepomuceno.

Às voltas com a mãe moribunda, Juan Preciado promete a ela que irá atrás de seu pai, Pedro Páramo, na distante cidade de Comala para reaver o que é seu de direito. Ao chegar à cidade descobre que seu pai está morto há anos e que Comala deixou de existir quase que por completo, não fossem pelos defuntos que vagam sem rumo. A simplicidade não está somente na sinopse, um romance deveras singelo que nunca perde sua elegância e vitalidade, mistério e invenção. As vozes e ecos que narram Pedro Páramo não são as mesmas, alterando entre terceira e primeira pessoa, o livro é um depósito de fragmentos que servem para contar a história do personagem que dá nome à obra, que teve uma infância miserável e se alçou como maior coronel e dono de terras de sua região, e sobre a cidade – escutando até seus fantasmas: aqui os mortos em suas covas participam da “contação” da história.

Adepto de um exercício de concisão literária, Juan Rulfo acreditava que para compor grandes histórias era preciso cortá-las e torná-las eficientes o suficiente para arrebatar os leitores. A diminuição dos textos são inversamente proporcionais a tamanha colaboração que o escritor teve na literatura. Publicou apenas dois livros oficialmente e se manteve em silêncio literário pelo resto da vida, conseguindo dois prêmios notórios: Prêmio Nacional de Literatura do México e Prêmio Príncipe de Asturías. Em sua homenagem, foi criado em 1991 o Prêmio Juan Rulfo, que laureia os grandes nomes da literatura latino-americana.

A tarefa de diferenciar os sonhos de Juan Preciado, a realidade de Comala e as aparições sobrenaturais tomam conta quase que inteiramente da primeira parte do romance – mesmo sem ter numerações ou referências é possível notar uma leve diferença na forma de contar a história dos diferentes narradores em terceira pessoa, enquanto os saltos no tempo se fazem necessários para manter o mistério (para o leitor) da morte de Pedro Páramo e seu legado à cidade. A segunda parte estabelece o vai-e-volta no tempo deixando mais sucinto o que é extranatural e loucura.

Pedro Páramo é uma figura ambígua e chega a uma característica de divindade dentro desse universo criado por Juan Rulfo. Por mais que seja um antagonista, muito do que ocorre na cidade de Comala se deve a ele. Grande parte das mulheres da cidade tiveram um filho seu – poder da fertilidade – e o crescimento dela e sua sustentabilidade devem-se aos negócios e às terras vigiadas pelo personagem. É também por sua decisão que a cidade entra na revolução, apesar de escolher o lado de quem está ganhando (estaria o Todo Poderoso ao lado apenas de quem vence?). Em nenhum momento há alguém que desafie Dom Pedro Páramo, seu poder ou sua divindade, mesmo que suas decisões estejam equivocadas e não há como passar batido o fato de que a cidade deixa de existir justamente quando ele para de viver. Não podemos ignorar o fato de que Pedro, o apóstolo, foi assim batizado por Jesus porque ele daria continuidade na sua igreja e que nele toda a palavra estaria fortalecida como uma rocha (significado do nome), algo inabalável – o que torna irônico a presença de um padre anti-herói na história – e Páramo, quando se entregou a morte, desmoronou com uma pilha de pedras.

Nenhum personagem é jogado no romance. Permitam-me falar sobre um dos grandes dentro de Pedro Páramo: o Padre Rentería, pároco pouco ortodoxo que tem uma personalidade ambivalente – por dentro tenta ser um homem bom, mas por fora é corrompido por mesquinharias e atitudes egoístas (incluindo aceitar dinheiro para enterrar um dos filhos de Dom Pedro) -, e muitos personagens não encontram nele um caminho para absolvição perante a Deus. Aí reside a razão para a cidade de Comala, anos após a revolução, manter a alma de todos os seus habitantes vagando e contando suas histórias.

Saiu da casa e olhou o céu. Choviam estrelas. Lamentou aquilo, porque teria gostado de ver um céu quieto. Ouviu o canto dos galos. Sentiu a envoltura da noite cobrindo a terra. A terra, “este vale de lágrimas”.

Todas as vozes de personagens invisíveis podem vir a confundir o leitor tamanha a variação delas e seu envolvimento direto ou indireto com Pedro Páramo – essa é a grande arma para o romance arrebatar a atenção de quem se atreve a lê-lo. Digno de uma construção linguística concisa e precisa – nada parece estar a mais ou a menos na obra -, Juan Rulfo não entrega nada por acaso ou facilmente, em sua estrutura não há uma linha temporal exata e muito menos um narrador fixo. As participações além-túmulo juntam-se às referências alegóricas e históricas sobre dois grandes acontecimentos no México: Revolução Mexicana – Pancho Villa é citado em dois momentos – e a Guerra Cristeira – tornando assim um exemplar importante do realismo fantástico reconhecido por Gabriel García Márquez (que por coincidência ou não tem um personagem em Cem anos de solidão com o mesmo nome a um desse romance), Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar.

Juan Rulfo exige do leitor uma participação em Pedro Páramo, em diversos momentos aqueles que acompanham a narrativa podem entrar em dúvida se existem ou não os fantasmas, se tudo aquilo é real e quão real chega a ser. Essa é a chave que transforma esse único romance do escritor mexicano em um marco na literatura mundial, seu poder de fazer o leitor questionar sua própria interpretação diante das palavras e sentenças minuciosamente escolhidas.