Existia um lugar em que a noite ainda não fora inventada. Em certo momento, nessa região, o flamingo anunciou que faria seu último voo. Quando questionado para onde iria, ele explicou que existiam dois tipos de céu: um voável, que era o que todos os animais e aves conheciam, e outro das estrelas. Esse último era o seu destino e não haveria retorno quando atravessasse a fronteira. Mesmo com pedidos para que ficasse e muita tristeza das aves, que eram incapazes de expressar a dor em lágrimas, o flamingo partiu. Conforme voava, se transformava em luz e avermelhava o céu ao horizonte. Quando desapareceu por completo, a terra conheceu a sua primeira noite. Desde então, acredita-se que quando os flamingos voam para o horizonte, estão a carregar o Sol para o outro lado do mundo.

Essa passagem que acabei de contar é apresentada ao leitor na forma de conversa entre mãe e personagem principal de O último voo do flamingo, romance de Mia Couto que leva o título por conta desse momento da narrativa. A história se ambienta em uma vila ficcional chamada Tizangara, que fica em Moçambique, na África. Nessa terra em que mortos e vivos ocupam o mesmo espaço, muita coisa acontece além da ciência e daquilo que os sentidos podem perceber e explicar de forma lógica. Por isso, quando soldados das Nações Unidas começam a explodir sem nenhuma mina, explosivo ou razão aparente, a ONU envia o investigador italiano Massimo Risi para desvendar esses acontecimentos. Em primeira instância, o livro é a história dessas investigações: soldados que explodem, restando-lhes apenas as boinas azuis que vestiam como uniforme e suas partes íntimas, o que, no início da narrativa soa até mesmo engraçado.

No entanto, mais a fundo do que isso, a história trata criticamente sobre como Moçambique foi governada depois da sua independência, em 1975, após séculos de colonização portuguesa. Ali, o idioma oficial é o português, mas muitas outras vozes, sotaques e línguas locais coexistem. Mia Couto aproveita para brincar com isso: escreve no português de Moçambique, mas se atreve em neologismos deliciosos, que deixam cada palavra com um significado maior, por exemplo: “Chupanga, todo manteigoso, bichanou no ouvido da prostituta”. Que bela comparação em dizer que um cochicho é um “bichanear”!  Além disso, mistura palavras em português a algumas dos idiomas locais. Até mesmo o nome dos personagens é carregado de ironias e brincadeiras com as palavras: Chupanga, por exemplo, é um puxa-saco que apenas “chupa” o brilho e poder dos importantes. Temporina é uma mulher castigada pelo tempo e, por isso, possui duas idades, sendo uma aparentada no rosto e outra no corpo. Já a prostituta da vila tem o nome de Anna Deusqueira.

Por conta disso tudo, a Companhia das Letras decidiu por não traduzir a edição. Escolha que, na minha opinião, não poderia ser mais correta. Mia Couto é um autor que gosta de tratar da língua como temática e, inclusive, já manifestou o desejo por um idioma universal. No caso de O último voo do flamingo, a língua é também uma personagem. É ela que traça as fronteiras de quem é da terra e quem é estrangeiro. Nesse sentido, se a língua é uma personagem da narrativa, posso dizer que o ambiente também o é. Mia Couto abusa de metáforas envolvendo os animais, a terra e a natureza.

Mais do que isso: o personagem principal da obra é um tradutor, que é também o narrador-onisciente. No livro, ele não traduz somente de um idioma a outro. Mostra também as tradições de seu povo e passeia pelo mundo dos vivos e dos mortos através da fala, porque, como disse anteriormente, eles vivem no mesmo espaço nessa narrativa fantástica. Ele é o personagem que conecta a língua e a terra ao italiano Massimo Risi.

Além dos vivos e mortos, Tizangara convive com a tradição sendo rebatida pelo poder dos novos administradores e estrangeiros que ocupam o local. Saberá um homem branco viver nessas terras? Massimo Risi terá que passar por toda existência delirante da região para então poder solucionar o mistério dos soldados explodidos. Enquanto isso, o leitor é presenteado com a história de cada um dos personagens que envolve o romance. À medida que nós e Massimo Risi os conhecemos, vamos nos adaptando à narrativa e conseguindo, juntos ao investigador, entender os mistérios das explosões.

Com tudo isso posso dizer que Mia Couto cria uma história que empolga e sensibiliza a cada página. O autor moçambicano, que defende uma literatura universal, prova que não importa onde estamos ou que língua falamos. Se deparar com Mia Couto é, ao mesmo tempo, sentir uma literatura utópica e crítica. Ele sabe mostrar todos os problemas e riquezas que seu país possui e, além disso, traz elementos ficcionais que instigam o leitor a todo o momento. E se isso tudo não for motivo suficiente para a leitura, recomendo-o porque também é uma obra sobre o relacionamento das pessoas. O tradutor e seus pais, por exemplo, revelam estórias secundárias lindas. Cada habitante de Tizangara tem algo encantador para revelar.

Autor: Mia Couto

Preço: R$46,00

Páginas: 225

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