Quando terminei de ler Jimmy Corrigan, o menino mais esperto do mundo, fiquei uns bons momentos imaginando o que é que aqueles que veem os quadrinhos como algo essencialmente infantil diriam. Da mesma forma, pensei o que aqueles que veem os quadrinhos como uma linguagem inferior à literatura iriam dizer. A HQ (ou graphic novel, se preferirem) de Chris Ware desafia ambas as opiniões extremistas ao mesmo tempo em que nos coloca numa história que foi comparada por vários críticos ao tão falado Ulysses, de James Joyce.

Jimmy Corrigan versa sobre três gerações de uma família, embora foque principalmente no Jimmy Corrigan neto (o atual, digamos assim). Ele leva uma vida melancólica e solitária, que tem como cenário uma cidade austera e um trabalho sem sentido no qual ele não possui nenhum amigo. Quase ninguém o nota, e quando o fazem, normalmente é para dirigir-lhe algum insulto ou comentário ríspido.

Jimmy Corrigan é potencialmente a encarnação do “loser” que tão insistentemente a cultura norte-americana procura preservar. Ele é jogado para lá e para cá pelas pessoas em volta dele, sendo incapaz de agir segundo a sua vontade, engolindo dessa forma sapos e mais sapos e destruindo sua auto-estima. Tudo parece mudar quando uma carta de seu pai, que não via há muito tempo, o convida para encontrarem-se e tentarem compensar um pouco do tempo perdido. É aqui que a história atinge tal nível de vergonha alheia que é impossível não se sentir mal pelo pobre Jimmy Corrigan, que parece não fazer nada certo em sua vida.

As imagens da lembrança de Jimmy se entrelaçam com a narração da história

Chris Ware nos informa, numa espécie de prefácio sarcástico, que “(…) o pináculo de toda busca estética é chegar a um método de reproduzir a experiência humana em toda a sua complexidade, riqueza e comparável mundanidade”, sendo isso o que ele procura fazer ao longo de toda a obra. A história segue os pensamentos e elucubrações de Jimmy ao mesmo tempo em que ele caminha. Ou seja, ele faz algo, e esse algo está desenhado, mas se ele pensa algo, esse pensamento está entremeado junto aos demais quadrinhos.

Justamente esse recurso que é comparado com o “fluxo de consciência” usado por James Joyce. A leitura da HQ exige, portanto, que o leitor consiga lidar com esses movimentos de vai-e-vem da realidade concreta e da cabeça do personagem. Chris Ware é muito cuidadoso ao estabelecer os encadeamentos, pois para cada mudança de ambiente (realidade e cabeça de Jimmy) ele coloca uma pedra de toque. A folha de uma árvore que ele porventura tenha visto cair, por exemplo, serve de elemento que catalisa a história a adentrar em sua memória, quando ele viu uma folha cair em outro momento de sua vida. É muito engenhoso e bem arquitetado.

O traço clean ajuda a criar a identidade visual dos personagens e elementos da história, bem como dota a narrativa de fluidez

O “fluxo de consciência”, além de nos fazer ter acesso às rememorações e pensamentos de Jimmy, também serve para nos colocar em contato com a história passada de sua família, que nos leva até a Chicago do século XIX. Todo o andamento da trama gira em torno desse movimento constante entre realidade e pensamento por um lado, e presente e passado pelo outro. Ou tudo junto, na medida em que o passado se entrelaça com o presente e faz pesar o espólio inglório do temperamento e personalidade de sua família.

Embora o resumo do enredo aqui possa fazer a trama toda parecer simplista, ela não é. Os elementos que Ware usa para nos mostrar como a vida de Jimmy neto é decadente são profundamente expressivos, como quando um homem, vestido com as roupas do herói de Jimmy (uma espécie de Super Homem) comete suicídio; ou quando uma nota é deixada sobre a mesa dele no trabalho, dizendo: “Sentei na sua frente por seis meses e você nunca reparou em mim. Adeus.”

Sentimos um pouco de raiva e um pouco de pena de Jimmy. Conforme vamos conhecendo a história de sua família, entretanto, vamos vendo que seu caráter é herança das gerações passadas, que balizam seu modo de agir e ver o mundo. Assim como a história que se passa na Chicago do século XIX mostra um Jimmy Corrigan acossado por todos os lados pelas pressões, sacrificando a elas seu bem-estar e sua auto-estima, vemos que no mundo moderno a coisa não mudou muito, Jimmy continua sendo pressionado e vem se retraindo cada vez mais. O suicídio que estampa os jornais, de certa forma, é um possível horizonte para o qual caminha sua vida.

Aqui Jimmy imagina qual deve ser a aparência de seu pai, ao passo que Chris Ware mergulha na mente do protagonista para nos pôr em contato com sua confusão

O traço de Chris Ware é enxuto, clean. Se limita aos elementos essenciais, e é bom que seja assim, porque diante da infinidade de elementos que aparecerão na história (e devido ao papel basilar que eles têm por conta dos encadeamentos e referências várias do “fluxo de consciência”) a identidade visual deles deve ser preservada e bem marcada na mente do leitor. Elementos da história vão aparecendo várias vezes em diferentes tempos e contextos, amarrando as histórias e remetendo o leitor a sentimentos e epifanias a cada página.

Mais do que uma boa história, Jimmy Corrigan é um exemplo de história bem contada. Chris Ware orquestra com maestria a narrativa sem deixar de lado a complexidade das experimentações. Um dos aspectos que chama a atenção é o uso inteligente dos recursos dos quadrinhos, criando uma narrativa com poucos elementos, mas abundantes de significado, que despertam, como ele mesmo diz, a compreensão instintiva do leitor.

Como era de se esperar, essa resenha não consegue dar conta de explorar a complexidade da obra, mas espero que tenha dado conta de motivá-los a ler e experimentar a mesma experiência que eu tive ao lê-lo. Posso dizer, sem medo de errar, que foi uma das melhores histórias em quadrinhos que tive a oportunidade de ler.