Há muito mais a ser compreendido do que imediatamente compreensível no livro Cães heróis, do mexicano Mario Bellatin. O estilo de escrita dele, desde a forma seca, direta e enxuta; até os recursos narrativos – que procuram restringir os eventos narrados ao estritamente necessário –, é uma verdadeira esfinge. E como uma esfinge ele segue até o fim do livro: impassível, aparentemente nos dando as pistas, mas ao mesmo tempo obscurecendo cada vez mais a verdade.

Não vou mentir: saí do livro acossado por toda a sorte de dúvidas. Parece que Bellatin quer mesmo é dar um nó nos nossos pobres miolos. O subtítulo sugere que há mais do que a trama bizarra na qual somos atirados: Tratado sobre o futuro da América Latina visto através de um homem imóvel e seus trinta pastores belgas malinois, mas até que ponto é possível tomar isso como verdade eu não sei dizer.

Se você resolver se aventurar por esse livro, se prepare para embarcar numa viagem em que nada parece fazer sentido – e talvez não faça mesmo, não sei dizer. Só tentando sintetizar a trama para que vocês possam ter uma ideia do clima nonsense e meio surreal que percorre cada página.

Um homem imóvel vive no segundo andar de uma casa. Nesse quarto encontram-se, entre outros objetos, uma gaiola com um pássaro de cetraria, uma gaiola com periquitos australianos, uma cama, um mapa da América Latina indicando com traços vermelhos os locais onde a criação de pastores belgas malinois estão mais desenvolvidos entre outros objetos.

Na casa onde se localiza esse quarto moram a mãe e a irmã do homem imóvel, que ficam o dia todo a ocupar-se com sacolas plásticas (que supostamente têm papel essencial na trama toda). Mora também o enfermeiro-treinador, que ajuda o homem imóvel com os cães e executa um ritual estranhíssimo em relação a suas pernas deficientes; e trinta pastores belgas malinois, treinados para obedecer ao menor comando do homem imóvel – que possui problemas de dicção e que os comanda basicamente por ruídos -, e matar qualquer pessoa com uma mordida certeira em sua jugular.

Bellatin sugere que a situação desse homem imóvel diz algo a respeito do futuro da América Latina. Um garoto que aparece durante a história, e que leva o homem imóvel a desenvolver sua arte de treinamento canino, pode muito bem ser o próprio Bellatin, já que ele escreveu uma de suas primeiras histórias muito jovem, e ela era sobre cachorros.

Desde a forma como a história nos é relatada até o seu conteúdo, tudo nos choca e nos deixa de sobreaviso. Parece haver uma verdade rastejando por debaixo de todos os absurdos que constituem o corpo da narrativa. Sinceramente, acho que existe algo maior, inscrito nas entrelinhas, que nos desafia a decifrá-lo, tal qual a esfinge sob a ameaça de devorar-nos.

Não sou amplo conhecedor da obra do Bellatin, sei que ela é bastante celebrada e que, resolva-se como se resolver Cães heróis, nos põe a pensar. Disso não há dúvida. Mas confesso que tenho um certo ceticismo em relação a esse livro, pode ser que hajam lacunas demais nesse texto em particular – visto ser o único de sua autoria que li –, pois a inconclusão é por demais abrupta. O encriptamento em que Bellatin envolveu o cerne de sua obra é muito denso.

Parece que se trata de uma grande alegoria, ou de uma metamorfose metafórica intrincada, dotada de todas as circunvoluções labirínticas que querem pôr nossos instintos e faculdades interpretativas no máximo. Como leitor apreciador de pitaco que sou, formulei algumas hipóteses que talvez sirvam de chave de leitura, ou talvez não.

Levando em conta que, de fato, a situação do homem imóvel seja passível de intuição sobre a situação da América Latina, poderíamos conceber sua casa como a América Latina, seus cães como os cães de guerra das ditaduras e ele próprio como os ditadores, que aleijados do poder de outrora, continuam a impor terror às populações que aqui habitam sob formas novas, talvez neocoloniais.

Outra possível abordagem é compreender o homem imóvel como o passado das guerrilhas e das esquerdas latino-americanas. Os cães seriam o que resta de sua combatividade, letal mas muito limitada em relação ao seu passado, onde podia por em xeque governos de países inteiros e levar a cabo processos que ganharam o nome de revoluções. Afinal, se são “cães heróis”, talvez sejam avatares contemporâneos de um “espírito sedento de transformação”, que bebe das fontes da tradição da História de luta da América Latina.

Seria esse o futuro da América Latina: estar aleijada e ter de confiar sua existência aos instintos assassinos de outros? Viver numa condição limitada e ao mesmo tempo ameaçadora, mas que promete muito mais uma subvida do que propriamente uma existência concreta? Ser, apesar da imobilidade, ainda tão intensamente letal?

São hipóteses, e provavelmente simples demais para abarcar a confusão que Bellatin quer nos causar. Dentro dessas duas hipóteses, o que representariam, então, a ave de cetraria, a irmã e a mãe, as sacolas plásticas, o enfermeiro-treinador, os periquitos australianos? O experimentalismo é a sua marca dominante, mas até onde poderá ele alargar as fronteiras e a elasticidade de arte e da literatura sem comprometer seu próprio estatuto?

Sem dúvida é um livro instigante, pois exige intensa participação do leitor. E gera curiosidade, pois queremos todos saber que fino fio de lógica costura esse emaranhado aparentemente sem sentido. Meus dons de alfaiate interpretativo, confesso, foram embotados diante da enigmática literatura de Bellatin, de modo que me sobrem somente alguns farrapos de apreensão aqui e ali.