O crítico E.S. Bates disse em seu Modern Translations, e foi corroborado pelo The Oxford Guide to Literature in English Translation, que as línguas mais negligenciadas em traduções literárias para o inglês são: português, grego moderno, hebraico moderno e holandês. Aqui no Brasil não é diferente. Conta-se nos dedos quantos autores holandeses foram publicados por estas bandas. E somente escritores contemporâneos. Clássicos, então? Nenhum. Até em Portugal há mais coisas. Enquanto esse panorama não muda, vamos conversar um pouco sobre o que esse pequeno país produziu.

Para começar, não confunda “literatura holandesa” com “literatura em língua holandesa”. A diferença? O holandês é falado, além de na Holanda, na Bélgica, no Suriname e nas Antilhas Holandesas. Como esse texto é sobre literatura holandesa, leia-se: é somente sobre a literatura feita na Holanda.

Apesar de o romance holandês ter se iniciado em 1637 com Arcádio batavo, de Johan van Heemskerk, e ter se consolidado em 1782 com A história da senhorita Sara Burgerhart , de Betje Wolff e Aagje Deken, o grande divisor de águas – e até hoje tido como a grande obra-prima daquele país – é do século XIX.

O romance Max Havelaar, de Multatuli, publicado em 1860, é um espanto. Ao lê-lo, não se sabe o que pensar dele. Misto de obra satírica, polifônica, autobiográfica, política, histórica, ensaística, cômica, cheia de parábolas e poesias, Max Havelaar funde, com inventividade poucas vezes vista na literatura mundial, gêneros e técnicas literárias à forte denúncia social. Multatuli toca em feridas políticas e sociais extremamente profundas (a colonização da Indonésia feita pelos holandeses) com mãos de mago. Não é à toa que possui ardorosos fãs estrangeiros, como J. M. Coetzee e Otto Maria Carpeaux. Sigmund Freud coloca Multatuli no topo de seus “autores amigos”. E D. H. Lawrence o compara a Jonathan Swift e Nikolai Gógol. Sem contar que todo escritor holandês não pode se considerar escritor se não leu Max Havelaar.

O impacto de Multatuli é tão grande que somente quase trinta anos depois de sua magnum opus ser editada surge alguém capaz de sombreá-lo: Louis Couperus. Se Multatuli é um Laurence Sterne, Couperus é um Henry James. Dono de um grande apuro estilístico, ele é o escritor holandês mais versátil e o que mais tem obras-primas. Algumas delas:

Eline Vere (1889) – os holandeses chamam-na de “o terceiro da tríade da mulher europeia”: Madame Bovary, Anna Kariênina e Eline Vere. Ao assistir uma ópera, Eline fica obcecada pelo barítono principal, tenta de todo jeito encontrá-lo, e não percebe que prefere a fantasia à realidade. Com essa sinopse simples, o autor disseca toda a alta sociedade de Haia de sua época.

Destino (1890) – talvez a obra mais polêmica do escritor. Dois amigos (claramente homossexuais) vão à Noruega e um deles acaba se apaixonando por uma mulher, desencadeando, assim, ciúme no outro, que toma atitudes drásticas. Impressiona a persona do ciumento, que Couperus pinta como um andrógino; certamente, é um dos personagens mais dúbios da literatura holandesa.

Sobre pessoas velhas e coisas que passam… (1906) – Dois velhos, uma mulher de 97 anos e um homem de 93, sofrem com o peso na consciência de terem cometido um crime 60 anos atrás. Temem, também, as consequências psicológicas que a descoberta pode causar na família. É, provavelmente, o livro mais cruel sobre a velhice e o peso de ter que arcar com as decisões tomadas durante o curso da vida.

Louis Couperus foi o autor mais famoso de seu tempo. Tanto que jogou para escanteio um escritor que somente décadas depois seria visto como seu maior “rival”, Marcellus Emants. Emants tem uma vasta bibliografia, mas o romance que o fincou entre os grandes do século XIX é Uma confissão póstuma (1894). Narrado em primeira pessoa, entramos na mente de Termeer, um sujeito extremamente perturbado que mata a esposa e, agora, se auto-analisa. J. M. Coetzee traduziu esta obra para o inglês e, em seu prefácio, a compara com Memórias do subsolo, de Fiódor Dostoiévski.

Multatuli, Louis Couperus e Marcellus Emants são os três principais romancistas dos 1800 e começo de 1900 na Holanda. Há outros? Sim, há outros, porém, esses três são os que realmente podemos colocar entre os grandes de toda Europa no século XIX.

Mas e o século XX?, você me pergunta. Bem, é o que veremos na segunda parte.

Sobre o autor: Daniel Dago é tradutor de holandês. Traduziu Sobre pessoas velhas e coisas que passam…, de Louis Couperus, contos de J. J. Slauerhoff, Nescio, Louis Couperus (todos ainda não publicados) e atualmente traduz Max Havelaar, de Multatuli.