No ano de 1989 comemorou-se o bicentenário da Revolução Francesa, e por ocasião tão simbólica data para a História da humanidade (e também por interesses nem tão celebrativos assim), uma enxurrada de publicações inundaram o mercado editorial francês e internacional. Tais publicações, longe de serem homogêneas, apresentaram visões diversas acerca do evento e de seu legado para a civilização ocidental, levando, desde estudiosos e historiadores até leitores desejosos de saber mais sobre o processo revolucionário, a voltarem-se para o ano de 1789 e procurar perscrutá-lo com vistas ao presente.

Eric Hobsbawm foi um desses sujeitos, ele viu seu campo de estudo, a História, sendo alvo de diversas pesquisas e objeto das mais variadas visões. Vendo nisso uma questão tão curiosa quanto significativa – e uma batalha que se via impelido a encampar, em nome da tradição historiográfica e política que defende -, o historiador resolveu não voltar-se à Revolução propriamente dita, mas ao vastíssimo material bibliográfico produzido sobre ela, esteja ele no campo da historiografia ou não. Desse intento foi que surgiu Ecos da Marselhesa: dois séculos revêem a Revolução Francesa.

O livro é curto, mas seu alcance é admiravelmente longo. Hobsbawm procura basear sua análise nas produções bibliográficas que remontam ao fim do século XVIII (principalmente pelos cronistas do próprio período da revolução, como Guizot, Michelet, Tocqueville, Burke etc.), o século XIX (caracterizado em grande parte por uma literatura que buscou louvar os feitos da burguesia francesa, ao lado da literatura marxista, claramente inspirada nos eventos de 1789) e o século XX (cujas leituras variam desde o seu mais subversivo apelo, como nos atores da Revolução Russa; como também num revisionismo recalcitrante dado a extremismos).

É muito interessante (e epifânico, em certo sentido) ver como muito da imagem que nos chega da Revolução Francesa,  através dos livros didáticos ou do “senso comum”, de filmes, documentários, obras literárias e memória socialmente construída, está diretamente influenciada por essas tradições ideológicas e políticas que procuraram tornar sua narrativa sobre a História a correta. Vale lembrar que tanto do ponto de vista da burguesia como do dos setores populares, a Revolução Francesa representou um evento-chave para compreender como seria a arena política e os principais grupos que nela se digladiariam, seja no século XIX, seja no século XX.

Se o século XIX viu a ascensão de muitos grupos burgueses em muitos países, isso buscou ser consagrado na visão histórica que esses grupos produziram. Não à toa, portanto, que muito da historiografia do século XIX tenha buscado consolidar a visão de que o processo revolucionário foi eminentemente burguês. Segundo essa linha, a Revolução Francesa fora, antes e acima de tudo, uma revolução burguesa. Era uma busca de legitimação para os próprios processos de ascensão e revoluções burguesas que se espalhavam pela Europa nessa época.

Do outro lado, na esquerda, temos uma tradição historiográfica que reconhece o importante papel desempenhado pela burguesia no processo, mas que reclama (com argumentos, obviamente) a participação dos setores populares (camponeses e sans-culottes) no processo revolucionário de forma tão ou mais determinante que a burguesia. De acordo com os próprios preceitos ideológicos e políticos dessa esquerda, reconhecer as conquistas do povo nesse sentido é parte essencial da herança que a Revolução Francesa legou aos homens.

Não bastasse a abrangência gigantesca do livro e o absolutamente hercúleo trabalho de pesquisa de Hobsbawm, ele ocupa-se ainda em por em relevo uma tendência historiográfica que ele considera perigosa a respeito da Revolução Francesa: o revisionismo histórico a esse respeito. Hobsbawm dirige-se, entre outros, aos trabalhos de François Furet e Denis Richet, cujas visões acerca do processo revolucionário francês incomodam-no profundamente.

Hobsbawm critica-os pelo extremismo, que minimiza a agência histórica de vários sujeitos nesse processo e que, por consequência, acaba por alijá-los em sua participação política e histórica nessa luta. Além disso, esse alijamento serve ainda ao intuito de tornar as lutas sociais herdeiras desses grupos menos importantes. Para esse revisionismo, mais do que consciência política engajada, a ação dos setores populares fora antes um “desvio histórico” de um processo em que a protagonista era a burguesia.

Não bastasse toda a lucidez dos textos, lastreados no engajamento do próprio Hobsbawm, o livro conta com um dos melhores títulos, na minha opinião, pois além de remeter-se a um dos símbolos do processo revolucionário francês (ligado aos setores populares no agosto de 1792), a marselhesa; em uma frase está inscrito todo o peso histórico desse evento para os dias de hoje e para a formação do que alguns chamam de a “civilização ocidental”.

Tenhamos nós sido afetados pela leitura conservadora ou radical do processo revolucionário francês, é impossível ignorar que um evento cuja memória é ainda tão encarniçadamente disputada hoje em dia não esteja estruturando nossa vida em infinitos aspectos. O fato de haver tal batalha é a evidência de sua relevância para compreendermos o mundo em que vivemos e, nesse ínterim, nossa própria história.