É complicado escolher uma obra específica de um autor conhecido para começar a ler. O receio de ler a magnum opus e se decepcionar por não estar familiarizado com o estilo é enorme no meu caso. Conheci David Foster Wallace depois de ler alguns comentários sobre a sua morte e a quantidade expressiva de escritores que o citavam em entrevistas e ensaios. Comecei pelos ensaios e adorei, fiquei com medo da ficção não me cativar tanto quanto a não-ficção torta de Consider the lobster. Mas é graças ao único livro traduzido para o português, Breves entrevistas com homens hediondos, que me encantei de vez com o autor norte-americano. Esse é um livro de contos com diversas histórias divertidas, desde as que carregam o título até aquele que abre a coletânea com meia página apenas. Porém, não estou aqui para falar novamente sobre o livro por completo, se quiser existem as resenhas da Anica e a minha, quero falar sobre Para sempre em cima, um dos melhores contos que já li.

A voz empregada por Foster Wallace em suas histórias é irônica, triste e muitas vezes cria expectativas negativas para afundá-las mais ainda com a verdade. No caso desse conto, o autor cria um suspense grandioso a partir de um cenário ordinário para uma família tipicamente americana. A começar acompanhamos o trajeto de um garoto da piscina até o trampolim. Uma piscina pública. Pessoas em volta. Um garoto e um trampolim. No seu aniversário. Do garoto, não do trampolim. Aniversário de 13 anos que para um judeu é ano de Bar Mitzvah, uma cerimônia para apresentar-se a comunidade judaica e, a partir dessa data, ser considerado um homem. Em Para sempre em cima, não há um credo, ou familiares levantando o jovem numa cadeira, há o medo e o anseio ante um espaço público, mas não deixa de ocorrer uma passagem enquanto o protagonista caminha pela área pública e depois sobe os degraus do trampolim.

A narrativa se constrói nesse meio e é possível imaginar muitas coisas, um desfecho dramático, uma covardia por parte do personagem e até por parte do autor. Todas essas emoções arrancam a voz do leitor, deixando-o desde o primeiro parágrafo apreensivo com o que pode acontecer, sem mesmo ter criado uma ligação emocional com o protagonista – e é justamente o que muitos romances podem perder a mão, em criar essa bendita ligação entre personagens e leitores a deixar o coração na garganta e as mãos trêmulas.

Essa soma de efeitos causados pela voz do narrador não é só impressionante, claramente não é para nós que é direcionado toda a narração, mas ao personagem principal. Podemos nos julgar, nós leitores, sendo o centro do enredo, que estamos dentro desse conto, prontos para subir uma escada, tamanha é a intimidade criada entre a voz narrativa e nossa consciência – tanto que somos tratados como você. O efeito disso catalisa consequências sobre tudo que poderíamos esperar de um retrato do cotidiano em meio a um espaço público, as pessoas parecem mais interessantes quando prestamos atenção aos nossos sentidos, as brincadeiras infantis parecem mais cruéis quando chegamos a certa idade – e ironicamente soam inocentes quando mais velhos. Não caindo em clichês ou em desenvolvimentos óbvios, Para sempre em cima joga o leitor para esse ambiente não só com sentimentos, mas com sensações. É um conto sensorial, aguçador mesmo, o cheiro do cloro impregna as páginas enquanto conseguimos ouvir, em sons distintos, as crianças rindo e chorando e gritando, a água se mexendo e a luz que reflete, o barulho de alguém pulando. Não só uma voz falando diretamente contigo.

O tema é simples: amadurecimento. Só que não há nada de simplório em amadurecer, é um processo que leva anos – querendo ou não ser sarcástico nessa anedota -, afinal, homens e mulheres amadurecem através das transgressões que cometem durante a vida, quanto mais forte é o trauma consequente de uma violação, mais rápido a pessoa pode sazonar e crescer quase que moldada ao mundo. Claro que esse desvio de conduta gera frutos bons ou ruins, amadurecimento não é só se tornar responsável de uma maneira correta, é arcar com tudo aquilo que suas decisões trazem, seja você fazendo coisas ruins, boas, neutras, etc. A divagação que apresento quanto a esse assunto gira em torno do real tema de Para sempre em cima, um rito de passagem não esclarecido. Não sabemos ao certo qual o papel desse trampolim, dessa calma pregada pelo narrador na vida do garoto como consciência. Sabemos que seus pelos pubianos estão presentes e agora as garotas parecem mais interessantes visualmente, a estética delas – suas curvas e seus tamanhos – ganham uma atenção a mais. Já tragados pela narrativa, através de suas experiências, o leitor se põe no lugar daquele que pisa em cada degrau antes do trampolim – antes daquele abismo desconhecido e cristalino – sentindo o peso marcar os pés, o calor umedecer as mãos.

“You can’t kill time with your heart. Everything takes time. Bees have to move very fast to stay still”

Esse é o conto que melhor foi traduzido na edição lançada pela Companhia das Letras (apesar do escorregão ao colocar Zé Colméia como Urso Yogi na tradução), mas peço para quem gosta de arriscar-se lendo obras no original, deve ir com afinco com esse conto. Tudo parecerá calmo e tenso. E não é uma variante, ele não parte de um ponto para ir ao outro. O tempo todo Para sempre em cima pode mexer com esses extremos sem que você leitor perceba, ele apenas vai te levar. Stay still.