Levantado do chão, romance de 1980, é considerado o primeiro em que o estilo tipicamente saramaguiano de narrar se consolida, e foi publicado quando o escritor português já contava 58 anos. A caminhada rumo à consolidação estilística e de temas, conquanto loga, se mostrou recompensadora: Levantado do chão é de fato um livro daqueles dignos de figurar entre as grandes obras tanto da literatura portuguesa quanto universal.

O livro conta, com aquela narrativa toda saborosa de Saramago, a odisseia familiar dos Mau-Tempo. A história dos camponeses de Alentejo começa com os eventos que marcaram a vida de Domingos Mau-Tempo, e continua com as desventuras de João Mau-Tempo e ainda enseja a participação de um varão da terceira geração da família, o jovem Antonio Mau-Tempo.

Levantado do chão é um livro sobre a vida camponesa de Alentejo, região de tradição rural na porção sul de Portugal. Os cenários campestres da região chamam a atenção, e Saramago procura investir neles algo além da exuberância que a natureza lhe concedeu: o legado de lutas e de desventuras cujas cicatrizes estão tanto na terra quanto na gente de Alentejo.

Seguindo o árduo caminho palmilhado pelos Mau-Tempo, Saramago traça a geografia de desigualdades e injustiças incrustado no tracejado latifundiário de Alentejo. Não se deixe enganar pelos contornos edênicos dos belos campos alentejanos, pois eles escondem séculos de enfrentamentos entre proprietários de terras e camponeses, que fazem as vezes aqui das duas classes fundamentais da divisão social capitalistas, patrões e trabalhadores.

Primeiramente expulsos dos terrenos cuja existência é fruto de seu trabalho, esses camponeses (entre os quais encontram-se os mal-aventurados Mau-Tempo) são obrigados, como condição de existência (ou de sub-vida), a submeterem-se aos imperiosos ditames dos “legítimos” donos da terra, que tudo fazem para preservar seus lucros em detrimentos de quaisquer preocupações com as populações que outrora ali habitavam e que agora ali mourejam de sol a sol em condições aviltantes.

Passando dos tempos monárquicos para os tempos republicanos, Saramago, com sua costumeira mordacidade, mostra como pouco realmente havia mudado para esses pobres trabalhadores. Mudaram somente as designações e as roupagens, pois as estruturas e os mecanismos, esses permaneceram os mesmos, com, somente, apesar da lubrificação da nova semântica. A crueldade a que são submetidos esses sujeitos, que, inclusive, permeia o senso comum muitas vezes de forma inadvertida, mostra as próprias contradições desse arranjo sócio-econômico que permite a existência desregulamentada de latifúndios.

Os Mau-Tempo procuram preservar o restinho de dignidade de que lhes foi permitido manter, mas os preços aviltantes das mercearias particulares, as condições extenuantes de trabalho e a repressão vigilante de movimentos de revolta os pressionam na direção contrária todo o tempo. Seu karma está inscrito no seu próprio sobrenome.

Saramago faz questão de pôr em relevo os absurdos desse estado de coisas, como, por exemplo, quando nos diz que havia um cavalo que se chamava Bom-Tempo, pois verdadeiramente possuía melhor destino que os membros da família protagonista. Em outra passagem, onde caminham extenuados os trabalhadores para sua lida agrícola diária, Saramago escreve sobre os desejos desses de ser o burro que puxava a carroça a sua frente, pois assim pelo menos poderiam empacar e não teriam seu salário reduzido por isso.

De várias formas Levantado do chão me lembrou As vinhas da ira, do escritor estadunidense John Steinbeck. Não só porque são odisseias familiares, mas porque o processo de concentração de terras que marcou a história de Alentejo também ocorreu largamente nos Estados Unidos, principalmente durante as décadas de 20 e 30. Os efeitos desse processo são também bastante similares, desde fome e miséria até repressão a revoltas e condições subumanas de existência em todos os aspectos. Tratam-se, nos dois casos, de farrapos humanos, a que se quer bestializar através da situação existencial completamente precária.

Essa comparação veio bem a calhar, pois Levantado do chão é um livro para se pensar e perceber o caráter universal de eventos que, por vezes, parecem ser restritos a um contexto específico. Assim como Steinbeck, Saramago também toma o partido dos despossuídos e engaja sua literatura num libelo contra os agentes de tamanha mazela. Tão belamente narrado quanto visceralmente crítico em sua abordagem, é, deveras, uma grande obra.