“Cada leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra do escritor não é senão uma espécie de instrumento óptico que ele oferece ao leitor a fim de lhe permitir discernir aquilo que, sem aquele livro, ele talvez não pudesse ver sozinho.”
Quem escreveu isso foi Proust, mas entrei em contato com essas palavras através de Milan Kundera, em seu ensaio A cortina. Se não me engano – não procurei bem, é verdade, mas não encontrei a citação exata – é nesse mesmo livro que Kundera revolta-se contra as definições da literatura em termos nacionais: o acaso de nascer em certas coordenadas geográficas, e aprender a comunicar-se em uma determinada língua não deve ser o determinante maior de um escritor, pois o que interessa mais é a experiência humana.
Não é só por eu ter lido A cortina há pouco tempo que lembro de tudo isso. É por ter acabado de ler um outro livro, que faz um caminho semelhantemente tortuoso. E ao qual essas duas ideias – a de Proust e a de Kundera – se interseccionam. Falo de HHhH, de Laurent Binet.
Binet é francês, mas seu livro é, indiscutivelmente, um livro tcheco – ou, ainda melhor, é um livro tchecoslovaco. Obviamente não posso adivinhar tudo o que ele sentiu ao escrever, mas até onde deixa transparecer ele parece sentir-se tchecoslovaco ao narrar a história da ocupação nazista de Praga. Um autor francês, um livro tchecoslovaco. E, enquanto lia, também eu sentia-me assim.
Talvez, é claro, isso se deva à citação de Proust com que começo. Pois o livro é sobre uma das obsessões maiores de Binet: a ocupação nazista de Praga e o assassinato de Reinhardt Heydrich, chefe da Gestapo, idealizador da Solução Final e “protetor” da Morávia-Boêmia entre 1941 e 1942. Heydrich era o cérebro de Himmler, como diziam os alemães – na frase que dá nome ao livro: Himmlers Hirn heißt Heydrich. Essa é uma obsessão que compartilho desde que vi os buracos de bala nas paredes da igreja ortodoxa de São Cirilo e São Metódio.
A história é a seguinte: os nazistas enfrentaram grandes dificuldades para pacificar a Praga ocupada. Até mesmo medidas como a identificação compulsória dos judeus por estrelas de David amarelas nas roupas enfrentaram resistência: muitos tchecos identificaram-se assim, mesmo não sendo judeus. E existiam os grupos armados de resistência. Tal espécie de coisas só cessou com o envio de Heydrich para lá. Com mão-de-ferro e uma crueldade sem-limites ele eliminou tanto quanto podia da resistência tcheca. Parecia que o domínio alemão estava assegurado definitivamente. Mas os tchecoslovacos não se entregaram facilmente: o governo tcheco no exílio organizou uma operação clandestina, denominada Operação Antropóide, para matar Heydrich. Enviou dois paraquedistas selecionados a dedo, o morávio Jan Kubiš e o eslovaco Jozef Gabčík.
É essa história – com todas as suas ramificações, incluindo aí os massacres de Lidice e Ležáky – que serve de obsessão conjunta para mim e para Binet. E não é apenas a história, mas sua própria obsessão que ele reconta no livro: por vezes escreve algo apenas para voltar atrás no capítulo seguinte, recusando qualquer invenção que tenha feito. Tenta se ater aos fatos, muitas vezes lamentando não saber mais.
Isso, no entanto, não torna a obra exageradamente metalinguística (mas obviamente, em grande medida, ela o é), nem acadêmica. O estilo de Binet é suficientemente sóbrio (e a tradução de Paulo Naves bastante boa) para que isso não só não atrapalhe, como dê um alento extra à narrativa.
Que aliás, não só tem um ritmo bastante bom, prendendo o leitor do começo ao fim (ou, pelo menos, um leitor como eu fui), como não é sentimental demais (e nem de menos): várias vezes estive à beira do desespero, à beira das lágrimas não tanto pelo que acontecia, mas por eu não ter a chance de ter estado lá, por essa não ser a minha história.
Heydrich morre. Kubiš e Gabčíkc conseguiram, apesar de tudo. O preço a ser pago foi alto – as marcas que eu encontrei naquela parede são a prova, mesmo para quem sabe pouquíssimo a respeito da história, e ainda há muito mais – mas os resultados foram grandiosos. Não estrago o final do livro contando isso: está registrado na história, pode ser lido em qualquer enciclopédia, nas entradas sobre Heydrich, sobre Operação Antropóide. Além disso, mais uma vez as opiniões minha e do autor convergem: não há um final. Essas histórias, as histórias, nada disso nunca termina.
HHhH
Autor: Laurent Binet
Tradução: Paulo Naves
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 344
Preço sugerido: R$ 51,00
Resenha bárbara. Linda mesmo.
Estive interessado em ler o livro, só por causa da capa. Agora não posso dizer que ainda estou. Não me parece ser o livro que busco ler no momento; daqui a alguns meses, talvez. Nada contra os fatos históricos (não quero parecer alienado ou algo do gênero), é só o momento atual da minha vida. Acho que busco coisas mais leves, sei lá.
O livro não deixa de parecer instigante, mesmo que não combine comigo agora. Acho que uma resenha como essa supre muito mais a lacuna de indecisão do leitor antes da compra/leitura do que uma orelha. É interessante notar como a mesma resenha mostra o quão bom o livro parece ser (coisa que eu não saberia até lê-lo, do jeito que me mantenho distante de quaisquer textos de quartas capas, orelhas, releases e mini resenhas em periódicos) e o quanto ele sua leitura precisa ser adiada em alguns meses.
“Que aliás, não só tem um ritmo bastante bom, prendendo o leitor do começo ao fim (ou, pelo menos, um leitor como eu fui), como não é sentimental demais (e nem de menos): várias vezes estive à beira do desespero, à beira das lágrimas não tanto pelo que acontecia, mas por eu não ter a chance de ter estado lá, por essa não ser a minha história.”
Várias coisas são escritas apenas pela força da expressão. Estamos digitando fria e racionalmente palavras emotivas que não ecoam mais internamente, mas que soam bonitas. Se for esse o caso, dane-se: eu as li como sinceras. E se for este o caso: brigado por compartilhar com tanta sinceridade tua experiência de leitura aqui.
Abraço.
Muito obrigado pelos elogios, Tuca.
Tenho a impressão de que cheguei perto do que pretendia, eu acho. Que era justamente mostrar o quanto o livro é bom, e o quanto ele é… difícil. Doloroso.
E eu fui sincero naquilo ali sim. Esse livro me pegou bem duro nisso, mas é o que me faz ler tanta coisa sobre a Guerra e sobre o Holocausto. Eu sobrevivi, eu nem sequer estive lá: desde o começo, nunca pude fazer nada. E, muitas vezes, me sinto mal por isso.
Abraço.
O clichê manda eu dizer “não se sinta mal”.
Mas sei como é sentir coisa parecida e não poder fazer NADA a respeito.
Outro abraço.
Tô no meio do livro, mas devo adiantar uma coisa: esse Laurent Binet é um chato, hein? Ele desdenha romances históricos e acha que tá escrevendo o que, afinal? Chama “As Benevolentes” de “Houellebecq entre nazistas”, mas seu próprio livro pode muito bem ser chamado de “Kundera entre nazistas”. Argumenta que foi ao máximo com suas fontes, dando a ideia de estar sendo honesto com o leitor, pra depois cair em cima de autores e/ou pesquisadores que deixaram escapar detalhes ou modificaram certos pontos pra fins ficcionais – e aí você descobre que o autor é um presunçoso. Mas devo admitir que ele foi corajoso em se expor dessa maneira, porque funciona – um romance onde o “método” para escrevê-lo é destrinchado? E onde o autor expõe seus questionamentos? Leitura fluida e interessante. Recomendo.
Elisa v. Randow mitou nessa capa, pra variar.