Foi um tanto temeroso que busquei construir um argumento sobre os motivos que levaram o livro Kitchen, da escritora Banana Yoshimoto, a fazer tanto sucesso no Japão. Não sei exatamente até que ponto minhas assertivas possuem solidez, mas lendo Kyoto, do escritor japonês Yasunari Kawabata, pude ver que elas não são de todo infundadas.

Na resenha de Kitchen, disse que os japoneses encontram fragmentos de humanidade com uma sensibilidade invejável na contemplação de eventos aparentemente corriqueiros. A queda de uma flor de cerejeira sobre a superfície de um lago, gerando ondas concêntricas, ganha todo um significado a partir da “vocação” contemplativa da qual gozam os japoneses. Há nisso gerações e gerações de aprendizados milenares sedimentadas ao longo dos séculos, produtos de um substrato de simplicidade mantido por eras de uma História da qual tão pouco podemos dizer conhecer.

Essa herança milenar não pode ser apagada assim, de uma hora para outra. Se Banana Yoshimoto encontra-se num tempo onde ela já sofreu mais duros golpes; Kawabata encontra-se em outro, onde o contraste – e o choque – são experimentados mais diretamente, não necessariamente em fragmentos. O “novo” e o “velho” (o tradicional e o moderno, o milenar e o contemporâneo) convivem numa dialética tão bela quanto curiosa.

A história de Kyoto não possui uma estrutura complexa ou cheia de reviravoltas, permanece tradicional nesse sentido. Takichiro cria motivos para quimonos. Ele mora com sua esposa, Shige, e sua filha, Chieko. O patriarca está acostumado a passar dias retirado, em estado de contemplação da natureza, para dessa experiência espiritual e ascética conceber as circunvoluções de seus motivos. Há todo um constructo de saberes envolvendo a feitura desses desenhos.

Ele, apesar de sua habilidosa arte, encontra dificuldades em publicizar seus trabalhos nos quimonos, pois a introdução de tecnologias nos teares e fábricas de tecidos solapa sua arte em nome da rapidez e da produtividade. E as mudanças não se restringem ao setor de produção, pois os antigos mercadores estão também sendo aos poucos engolidos pelos grandes comerciantes com suas lojas de roupas, em grande parte ocidentais.

Emblematicamente, o armazém de Takichiro foi uma das únicas construções em Kyoto que não foi destruído por incêndios e substituída por traços e elementos modernos. Ele é um dos representantes do antigo Japão – do antigo modo de trabalhar e de viver -, que foi transformado pela Restauração Meiji no início do século XX e abalado pela invasão norte-americana na Segunda Guerra Mundial. Kyoto é uma das cidades japonesas que mais intensamente se modernizou e se ocidentalizou, apesar disso, Kawabata busca obstinadamente retratar o que há nela de tradicional, e não moderno.

Não é preciso folhear muito o livro para encontrar exemplos de como a vida simples e a contemplação da natureza fazem parte da vida da família de Takichiro. O próprio cotidiano deles segue o ritmo sereno da natureza – não o frenético das novas máquinas que eram introduzidas. Nessa cadência, toda a vida ganha outro sentido, e atividades que hoje em dia podem parecer entediantes, se revelam verdadeiros aprendizados filosóficos sobre a natureza do universo e do homem.

É admirável como Kawabata lida com o tema da modernização com sutileza, evitando artificialidades. Os personagens e suas relações expressam os dilemas que representam essas mudanças em suas vidas. Chieko, por exemplo, descobre que foi adotada e, num acaso, encontra sua irmã, Naeko, que mora nas proximidades campesinas de Kyoto. Naeko é retratada como uma pessoa cheia de virtudes, não porque essa seja sua “natureza”, mas porque ela não foi tão direta e intensamente “contaminada” pela modernização.

Outro personagem que chama a atenção é Hideo, filho de um amigo e parceiro de negócios de Takichiro. Hideo é um personagem que vive um dilema existencial, pois ele está no limiar entre o modo de vida de seu pai e o modo de vida preconizado pelas tecnologias. Assim, ele não consegue se decidir se irá cultivar os valores de seu pai ou os valores ocidentais.

Kawabata toca nessas questões de forma sensível, procurando a todo o momento trazer à tona as belezas da “vida antiga” e as contradições e absurdos da “vida moderna”. Há um sentimento profundamente humano e belo em tudo o que cerca o antigo modo de viver em todos os seus aspectos. É justamente daí que Kawabata tirou o fôlego e a inspiração para escrever Kyoto.