Uma das minhas principais áreas de estudo da escola da vida é a síndrome do não-gosto mais. Essa condição atinge grande parte da população que, em algum momento da vida, curtiu algo ou alguém que parecia ser feito sob medida para si mesmo. Um vínculo tão íntimo que palavras e sentenças não se igualam ao tamanho do sentimento. Trocando em miúdos, a ligação entre um aficionado e sua obsessão – seja da música, dos filmes ou dos livros – é incalculável e difícil de explicar com precisão. Todavia, um impasse pode aparecer durante esse relacionamento, essa idolatria incomensurável, fazendo com que tudo de positivo desapareça, dando espaço a desconfiança e até mesmo a repulsa.
É quando uma banda antes desconhecida para o grande público, e com poucos fãs mas fiéis, estoura nas paradas por um pacto com o tinhoso. Os pobres filhos únicos agora têm de dividir atenções: entradas de shows, compartilhamentos e citações que antes cabiam somente a eles mesmos. O sentimento de identificação e conexão se perde para dar lugar a uma inveja e um ciúme possessivo. À priori, vem a superioridade por espaço de tempo e conhecimento. Muito se ouve: “Curto eles desde 19eguaranácomrolha”, uma forma típica para mostrar que esse amor existe há muito mais tempo, ou “Gostava mais da fase disco 1 e 2; depois eles mudaram a sonoridade”, demonstrando certo desprezo com os novos adoradores que não conhecem a raiz, a origem e o verdadeiro ídolo.
Isso não é exclusividade do mundo da música. Na literatura existem os diversos “apegados” aos seus personagens e histórias, aqueles que não creem que outras pessoas consigam entender o âmago e a beleza que envolvem esses dois. Fãs de O Senhor dos Anéis, por exemplo, por muito tempo desprezaram aqueles que só chegaram aos livros através dos filmes. O mesmo acontece com Pottermaníacos, fãs de Crepúsculo, de Jogos Vorazes e, em última instância, os aficionados por HQ’s.
O apego é uma estima muito grande por um objeto ou uma pessoa. Muitos dos bibliófilos que conheço se apegam a pequenas coisas em suas coleções pessoais: capas duras, idiomas, tradutores, edições diferentes, edições iguais (uma para ler e outra para deixar plastificada – ou você achava que isso era exclusivo de fãs de HQ?) e diversos outros traços de transtorno obsessivo compulsivo (TOC) como a ordem em que os livros estão organizados e qual autor ou gênero vem antes de outro. Essa relação física com o material vai bem além do tratado espiritual e racional (depende mesmo da leitura) que existe entre o leitor e a personagem, ou história, que tanto venera.
Contudo, não há como negar que o ápice dessa síndrome, o estágio avançado que dá nome a ela, é quando a pessoa não quer mais gostar, pois a popularidade chegou ao ponto de se tornar irritante demais. Em casos mais recentes vemos a cantora Adele. Aos poucos a britânica conquistou os espaços em cadernos de cultura, revistas e redes sociais. Diversas vezes a música Someone like you tomou conta da lista de vídeos mais acessados do YouTube e compartilhamentos no Facebook. Bastou isso para mensagens de repulsa à cantora surgirem. O mesmo acontece no cenário brasileiro, o cantor Criolo caiu nas graças de muita gente e nos maldizeres equivalentes. No caso, o enfermo pode até gostar do músico, livro, etc., mas se recusa a admitir. Vivendo um amor secreto e doloroso.
Para mostrar como essa é uma via de duas mãos, existe também o caso dos hipermodernos. Pessoas que pegam algo que caiu no ostracismo, ou é de gosto duvidoso nos tempos atuais, e simplesmente jogam num patamar que jamais ocupou. O brega se transforma em sensacional ou incompreendido – a famosa regra dos 20 anos, onde tendências antigas voltam com tudo (como a moda dos anos 1980 no começo dos anos 2000). Não confundam esses com os famosos “do contra”, aqueles que não gostam simplesmente porque todos gostam e, muitas vezes, não conhecem aquilo que dizem não gostar. Os hipermodernos fogem das tendências para criarem as suas próprias e, de vez em quando, tem um sucesso bem promissor – muito se devendo às sombras em que determinado estilo, música, livro ou filme se manteve em sua época.
Seja lá qual for o seu grupo, a sua síndrome ou seu ídolo, o que importa é que você não pode negar que participa de um grupo que procura algo para ser seu somente. Ou seja, todos os fãs acabam sendo egoístas, mesmo que mais para frente venham a compartilhar parte de suas fixações com outros. Afinal, é sempre bom encontrar pessoas com interesse em comum.
Em tempo: o que acharam do texto? De repente, não gosto mais porque tem gente lendo.
O que importa é você gostar do que você gosta, independente de fatores externos. Oh, li O Senhor dos Anéis pelo menos uns cinco anos antes do anúncio de qualquer filme… e continuo gostando até hoje. Tanto faz quem conheceu por meio dos filmes, tanto faz quem hoje não gosta mais porque virou ~modinha~… Oh, agora é ~modinha~ ser ~nerd~, gostar de ~coisas nerds~… e daí? Segmentos, grupos, rótulos… preocupam-se demais em tachar-se, em se agrupar em círculos, em vez de simplesmente gostarem do que gostam e pronto.
Sim, o problema maior é que os modistas adoram reclamar quando a moda virou algo segmentado. Agradeçam Big Band Theory.
A miha essencia é miha somente, o resto é resto…
Nunca deixei de gostar de algo só porque todo mundo passou a gostar…
Na verdade, comemoro bastante quando vejo isso acontecer, diferente de amigos meus que começam a reclamar 😛
Se acho algo bom, quero mais é que a humanidade toda goste também daquilo, assim a humanidade toda será melhor o/
Raro casos assim. Será que o mundo virou indie?
Realmente esse fenômeno moderno é bastante curioso. Fácil de associar essas inconstancias com a rapidez com que o mercado cultural se recicla, se apropria e regurgita tendências, feito adolescente bobo.
Já me peguei torcendo horrores para o relacionamento atual da Adele dar certo, pq eu simplesmente não aguento mais escutar ela sofrer, over and over again na minha rádio, nas lojas, nas bancas de jornal, no celular da minha amiga, mas seria muita hipocrisia minha não admitir que eu mesma escutei até exaustão algumas das faixas durante os primeiros meses de lançamento…
Excelente texto Felippe! Tá de parabéns…
Ui, então o caso Adele serviu para alguém. Já ouvi casos de Amy Winehouse e até Restart.
Eu sinto um certo ciuminho quando alguma coisa que era só minha vira “mainstream” . Mas sou uma fã missionária, quando gosto de alguma coisa, quero que TODOMUNDO conheça, só pra poder comentar…
Sinto o mesmo. Acho que todo mundo passa por isso.
Creio que muito dessa sensação se dá, muitas vezes, porque o que você gosta antes do que todo mundo é rejeitado antes de ser aceito. Além do ciúme, existe uma dor de cotovelo porque ninguém dava ouvidos às suas indicações.
Isso pode criar até uma raiva de verdade.
Disse tudo, Felippe. Sinto a mesma coisa quando a minha mãe coloca pra tocar Leonard Cohen – que nem foi indicação, mas que (in)felizmente deixei em cima do armário e ela, de curiosa, resolveu ouvir – ou quando o meu pai ouve Radiohead – o curioso é que, no caso dele, eu vivia ouvindo e ele chamava de barulho. Agora ele que escuta. 😛