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“Mas esse livro aqui não é sobre isso. Os livros não são sobre ‘vida real’. Os livros são sobre outros livros” (p. 38, A trama do casamento)

(Antes de tudo, um aviso: este texto não é uma resenha de A trama do casamento, de Jeffrey Eugenides. Ainda estou me aproximando da metade do livro.)

Uma das coisas que mais me perguntam é “o que você anda lendo?”. Em dias normais, eu geralmente cito uma lista de três ou quatro livros que se alternam em minhas mãos. Ultimamente, meu cérebro tem pifado por alguns segundos antes que eu consiga dar a resposta: leituras para resenhar, para o mestrado, para preparação da cobertura da FLIP, para um adequado convívio social e para o prazer exclusivamente pessoal têm se acumulado. Nesses casos, eu normalmente respondo algo como “Agora mesmo eu estou lendo isso…” e mostro a capa; depois, prossigo com um “Mas se for tentar me lembrar de todos os livros que comecei recentemente, pffff…”.

E aí vem o momento da pergunta+afirmação que normalmente se segue: “Como é que você consegue ler tanto? Se eu tento ler dois livros ao mesmo tempo, acabo confundindo totalmente as histórias. Imagina quatro!”.

Este texto não pretende ensinar como ler quatro livros ao mesmo tempo sem confundir totalmente as histórias. Não mesmo. Falo a seguir sobre como foi misturar na cabeça quatro romances.

A trama do casamento é um romance ambientado – ao menos, até onde li – numa universidade e narra a história do triângulo amoroso entre Madeleine Hanna, Mitchell Grammaticus e Leonard Bankhead. Madeleine faz Letras e sua escolha se deveu a razões muito parecidas com as minhas.

Ela tinha escolhido se formar em letras pela mais pura e mais boba das razões: porque adorava ler. O “Catálogo de Cursos de Literatura Britânica e Americana” era, para Madeleine, o que o seu equivalente de uma loja de departamentos era para as colegas dela. Um curso como “Inglês 274: o Euphues de Lily” excitava Madeleine como um par de botas de caubói Fiorucci excitava Abby. “Inglês 450A: Hawthorne e James” deixava Madeleine ansiosa pelas horas pecaminosas na cama, assim como Olivia ficava ao usar uma saia de laicra e um blazer de couro na danceteria. (p. 29)

Ao ler esse trecho, achei interessante que o autor repetisse, já na página 29, a motivação boba de Madeleine. Parecia até falta de atenção na hora de revisar. Fui comparar com o trecho anterior em que havia algo semelhante escrito e… quem disse que encontrei? Depois da folheada e da leitura dinâmica, tentei ler mais atentamente as poucas páginas precedentes e… nada.

Quando comecei a imaginar que aquilo tudo era uma invenção da minha mente, a palavra “nutrição” me apareceu. Uma palavra específica é, convenhamos, algo mais forte do que uma impressão. Até que percebi onde estava meu erro.

Aos dezessete anos Emilia foi estudar literatura na Universidade do Chile, porque esse era o sonho da sua vida. Anita, claro, sabia que estudar literatura não era o sonho da vida de Emilia, e sim um capricho diretamente relacionado a sua recente leitura de Delmira Agustini. Já o sonho de Anita era perder alguns quilos, o que não a levou, obviamente, a estudar nutrição ou educação física. Matriculou-se provisoriamente num curso intensivo de inglês, e passou anos estudando naquele curso intensivo de inglês. (p. 41)

O trecho que continha a palavra “nutrição” estava no romance Bonsai, de Alejandro Zambra, lido dois dias antes de começar A trama do casamento.

Finalmente eu tinha uma prova concreta da confusão alegada por todos como desculpa para evitarem leituras simultâneas. O que só demonstra que eu realmente tenho algum problema: a experiência, em vez de me convencer que é bom “respirar” entre as leituras e ser monogâmico literariamente, só me fez ter mais vontade de confundir leituras.

Foi então que decidi ler Toda terça, de Carola Saavedra, quando ainda estava na centésima página do último romance de Eugenides. Li inteirinho, numa sentada metafórica (“ler em um dia praticamente” é a definição mais aproximada de uma “sentada metafórica”), por duas razões. A primeira foi a imensa vergonha que senti por não ter lido nada da autora quando ela veio a Curitiba participar de um debate com o José Eduardo Agualusa – ela falava tão bem, e seus textos no Jornal Rascunho eram tão bons, que o único motivo que encontrei para não ter lido ainda seus romances foi a bendita “falta de vergonha na cara”.

A segunda razão interessa mais aos fins deste texto: ao ler o primeiro capítulo na casa da leitura, percebi que seria fácil provocar uma nova confusão com livros anteriores. Vejamos: há uma narradora (Laura) que está na faculdade (ainda que esteja com dificuldade de  ir às aulas); há um Julio (como em Bonsai); há o tema da terapia/análise (Madeleine tem a regra de nunca sair com caras que fazem terapia; “toda terça” Laura visita seu terapeuta, Otávio); o tema do amor em relação direta com a solidão é citado (no livro de Eugenides, muitas vez por meio de citações de Roland Barthes), como no trecho a seguir:

– O que eu quero dizer é que dois lugares à sua esquerda tem alguém sentado, está escuro, você não tem como ver o rosto, nem sabe se é velho ou se é jovem, mas há entre vocês um elo, e você sabe que ele sabe que você sabe. É uma espécie de segredo, de tristeza compartilhada, é, acho que é isso que eu queria dizer. Há muito tempo, eu li em algum lugar, num livro de auto-ajuda eu acho, uma frase que dizia que amar é compartilhar a própria solidão, é bonito, não é?! (p. 17-18)

A tentativa foi interessante, mas não foi muito além do que normalmente ocorre em qualquer leitura (nas minhas, pelo menos). Eu sempre busco encontrar coincidências, perceber referências, mesmo entre os livros mais díspares. Simplesmente não consegui confundir os livros e o máximo que tirei dessa experiência é que preciso urgentemente ler o restante da obra dessa escritora (já providenciei um Paisagem com dromedário que também está querendo atrapalhar a leitura de Eugenides).

Porém, há ainda uma reviravolta nessa história. Justo quando eu começava a acreditar que a confusão entre Bonsai e A trama do casamento era algo que não se repetiria, cheguei a um momento do livro em que determinado personagem é internado. Diz-se dele que “Bom, de início ele estava meio maníaco. Mas agora ele está depressivo mesmo. Assim, clinicamente, sabe” (p. 120). O trecho que segue essa fala é uma (relativamente) longa descrição da evolução do estado clínico do personagem até a página 125.

Foi então que achei interessante que o autor meio que se contradissesse. Ou, pelo menos, que tivesse feito seu personagem se contradizer. Em uma cena ele teria feito (atenção à escolha do tempo verbal) todo um discurso sobre a balela do discurso psicanalítico atual, isso já nos anos 1980, quando se passa a história.

Só que, novamente, não encontrei a passagem anterior para grifar. E dessa vez tinha um problema: teria que investigar mais de cem páginas. Pensei logo: “Não vale a pena”. Pouco antes de dormir, no entanto, tive um estalo: Nada me faltará, de Lourenço Mutarelli. Em menos de um minuto, achei o trecho:

Hum, hum. Você tem se sentido deprimido?
Não. De forma alguma. Isso até me irrita um pouco. Essa onda, essa mania das pessoas de ficarem procurando pelo em ovo.
Pelo em ovo?
É. Antigamente não tinha essa coisa de depressão, e hoje em dia todo mundo diz que sofre de depressão ou de síndrome do pânico, essas coisas.
Fale mais sobre isso.
É isso. É meio que um modismo. Não vejo mal nenhum nisso de ficarmos desmotivados. E eu não estou falando só de mim, acho que essa coisa de ficar sem vontade, desmotivado ou cansado, não tem nada a ver com depressão. Isso é uma coisa corriqueira. É o preço disso tudo, dessa estrutura que criamos e que acaba nos consumindo. (p. 52)

Como confundi Eugenides com Mutarelli? Simples, os temas se repetem, meus caros. Mesmo quando um livro se propõe a falar sobre histórias da “vida real”, supostamente “únicas”, há tantas histórias no mundo que o meu dever como pessoa com um mínimo de discernimento crítico é o de revirar os olhos quando alguém alega uma suposta originalidade de tema.

* * *

Talvez os livros sejam realmente sobre outros livros. Talvez nem todos precisem explicitar as citações a outros livros (como Zambra e Eugenides fazem com bastante propriedade), nem seja necessário confundir literalmente obras que não tem muito a ver entre si, em decorrência de um tilt mental. Mas continuo achando que uma das coisas mais legais da literatura é ativamente perceber esses fios quase invisíveis, essas coincidências, mesmo que as obras aparentem que não poderiam ser mais distintas entre si. Acho um bom exercício para a mente.

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EUGENIDES, Jeffrey. A trama do casamento. Companhia das Letras, 2012.  Tradução: Caetano W. Galindo. 440 páginas. Preço sugerido: R$ 46,00.

ZAMBRA, Alejandro. Bonsai. Cosac Naify, 2012. Tradução: Josely Vianna Baptista. 96 páginas. Preço sugerido: R$ 23,00

SAAVEDRA, Carola. Toda terça. Companhia das Letras, 2007. 160 páginas. Preço sugerido: R$ 41,00

MUTARELLI, Lourenço. Nada me faltará. Companhia das Letras, 2010. 144 páginas. Preço sugerido: R$ 37,00.