Há algumas semanas, ao acessar o fórum Valinor, como faço, religiosamente, todos os dias, me deparei com uma mensagem da Anica no perfil. A mensagem era composta por um link e uma frase, mais ou menos assim: “ei, vc toparia escrever algo sobre o q esse cara disse aqui para o Meia? hum hum?” Abri o link rapidamente, li e respondi na hora: “Só se eu puder usar o título ‘Deformadores de opinião’”. Ela sorriu e disse que eu poderia usar o título. Entretanto, como ando meio atarefada, acabei não escrevendo o texto no calor do momento. Acabei deixando que o meu lado fã se acalmasse para que eu pudesse absorver a coisa toda.

Contudo, acredito que a Anica tenha pedido para que eu falasse sobre a declaração do Peter Greenaway justamente pelo fato de eu estar emocionalmente ligada às sagas criticadas pelo cineasta; pela minha fama de impulsiva, e pela minha consciência de que fã é uma praga. A declaração dele, para quem não clicou no link, foi a seguinte: “Harry Potter e O Senhor dos Anéis não passam de textos ilustrados.”

Minha reação inicial ao ler a declaração foi a de pensar em mil palavras ofensivas para direcionar ao Peter Greenaway. Pois é, ser fã faz isso com a gente. Voltamos a ter 12 anos – quando quem diz mais palavras ofensivas vence uma discussão – com uma facilidade imensurável. Aproveitei meu momento de fã e também pensei em chamar o Greenaway de pretensioso, para mostrar que eu era uma adolescente que conhecia palavras “chiques”. Mas aí a raiva passou, voltei a ter 26 anos, e a ideia que foi ganhando forma, na minha mente, é a de que discordo da declaração do cineasta, e nem é pela questão técnica de que os livros citados por ele não são ilustrados. A minha discordância não é algo que nasceu naquele momento, não é algo que foi oportunamente construído, mas é algo processual. Não vou dizer que é imparcial porque para além do fato de que imparcialidade é um mito, sou fã, confessa, de Harry Potter e O Senhor dos Anéis. Mas posso dizer que é uma discordância ressignificada.

Sou daquelas pessoas que leem até bula de remédio. Tenho sempre em minha bolsa um livro e uma revista em quadrinhos (geralmente da Marvel, me julguem!). Será que alguém vai aparecer aqui e dizer que quadrinhos não passam de ilustrações comentadas? Nunca se sabe em que lugares se escondem os Greenaways brasileiros. Já li livros inteiros em hospitais, em fila de banco, etc. Conheci O Senhor dos Anéis bem nova, com… 12 anos (quem diria! Eu ainda era uma adolescente que acreditava ser onipotente, que ostentava um ar apolíneo… ah! A arrogância da juventude…). Um amigo dos meus irmãos me emprestou o livro, volume único, e disse “divirta-se!” Eu segui, à risca, a recomendação. Devorei o livro. Alguns anos depois, quando conheci Harry Potter, minha mente decidiu: eu passaria os meus dias em Valinor e as minhas noites em Hogwarts. Os feriados eu passaria em Discworld. E as férias em Westeros (que conheci em 2004).

Tudo bem, saindo da fantasia e voltando para o mundo real, eu preciso dizer uma coisa: nunca li Harry Potter ou O Senhor dos Anéis esperando um novo Ulisses. Esperando um novo Memórias póstumas de Brás Cubas. Esperando um novo Grande sertão: veredas. Esperando um novo Rayuela. Enfim, não fiquei “Esperando Godot” o que, talvez, tenha sido essencial para que eu tenha gostado das sagas em questão. Eu não procurei mais do que elas ofereciam. Eu não pedi um pão de queijo e fiquei esperando sentir o gosto de uma pizza. E acho que é bom que haja esse cuidado por parte de qualquer leitor. O livro te oferece algo, e as suas expectativas, o seu conhecimento de mundo, definem se você vai aceitar o que lhe é oferecido ou não. Não estou, de modo algum, dizendo que todo livro tem o seu valor, que todo livro tem algo a oferecer, que todo livro é bom. Desculpem-me, ainda não cheguei nesse grau de evolução ou de relativismo burro. Estou dizendo que devemos analisar o livro pelo que ele se propõe a fazer. Se ele deu conta disso, ele pode receber, no mínimo, o adjetivo “honesto”. Agora entra a subjetividade: o leitor pode ter considerado o livro bem escrito, ele pode ter atendido à proposta, mas o enredo não lhe agradou. Aí já é outro assunto. Às vezes, o leitor até pode gostar do gênero fantasia, mas isso não significa que ele gostará de todos os livros de fantasia.

Peguemos, como exemplo, o strogonoff. A pessoa diz que gosta de strogonoff. Ela já experimentou diversas receitas do prato e adorou. Gosta tanto do de frango quanto do de carne. Um certo dia, ela foi jantar na casa de uma amiga. O prato era strogonoff, mas sua amiga tinha colocado azeitona. E ela odeia azeitona. E agora, quando ela for pedir strogonoff em algum restaurante, é certeza de que ela ficará satisfeita ao experimentar o prato? Ela pode dizer que se é strogonoff é certeza de que é bom?

O mesmo acontece com os livros. Você pode até ter predileção por um certo gênero, você pode até curtir romances policiais, que você sabe o que esperar, é um romance FECHADO. Você não vai esperar mais do que isso desse gênero (em estado “puro”, claro, não estou falando de gêneros híbridos. Sim, essencialmente, não existe nenhum gênero puro, mas vocês entenderam o ponto). Entretanto, o fato de você gostar de Sherlock Holmes não é garantia de que você gostará de Hercule Poirot ou de Miss Marple. O estilo de escrita (ou a receita, voltando ao exemplo do strogonoff) do Sir Arthur Conan Doyle é diferente do estilo de escrita da Agatha Christie. É pecado gostar de um escritor e não gostar do outro? Não. É pecado não gostar de nenhum dos dois? Também não. Mas é incoerente dizer que não gosta de O caso dos dez negrinhos porque ele não é como Bom Crioulo. Estamos falando de gêneros diferentes, propostas diferentes de escrita. Ignorar esse detalhe é como querer juntar água e óleo só porque os dois “são” líquidos (podem ser encontrados no estado líquido). Não funciona assim.

Não dá para, simplesmente, dizer que LIVRO É TUDO IGUAL. Esse tipo de coisa é tão leviana quanto dizer que Harry Potter e O senhor dos Anéis não passam de textos ilustrados. Isso é ser injusto. É não reconhecer todo o trabalho criativo dos autores. É não reconhecer os processos intertextuais passeando pelos textos, é não reconhecer a literariedade dos textos em questão. É não reconhecer o trabalho que Tolkien fez com mitologias. É não reconhecer que a J.K bebeu não só de Tolkien, mas de Homero e de muita gente boa, e conseguiu sustentar (e desenvolver) uma ideia por sete livros. Percebam que não citei coisas como “não reconhecer o valor das amizades”, porque isso já entra, muito, na questão da subjetividade. Tentei ficar nos pontos que MOSTRAM que os livros citados não são apenas textos ilustrados, mas são, legitimamente, obras literárias.

Eu considero que o Peter Greenaway seja um deformador de opinião? Não. Assim como não considero que o Herzog seja incompetente como cineasta por ter feito declarações polêmicas contra o Godard. Considero que o Bergman tenha sido um cineasta desprezível pelo fato de ele ter sido meio HATER e ter feito declarações de ÓDIO que foram direcionadas de Orson Welles a Godard? Não. Acho que, em algum momento, todos fazemos declarações infelizes. E eu acredito que a declaração do Peter Greenaway, na qual ele diz que Harry Potter e O Senhor dos Anéis não passam de textos ilustrados seja, sim, deformadora de opinião. Ou, talvez, formadora de arrogantes. Querendo ou não, o cineasta em questão tem um certo prestígio, e quando ele fala esse tipo de coisa, muitas pessoas nem vão se preocupar em averiguar, ou tirar a prova, elas assumirão que Harry Potter e O Senhor dos Anéis não podem ser considerados obras literárias. E eu acho isso algo meio perverso. Acho perverso você utilizar do seu prestígio para destruir algo que não se encaixa nos seus padrões, nas suas preferências.

Para evitar cometer este tipo de injustiça, quando decidi estudar literatura fiz uma promessa para mim: a de NUNCA deixar morrer em mim a leitora para que, em detrimento dela, nascesse a crítica literária. Eu optei por não deixar morrer em mim a capacidade de me divertir, de me emocionar com o que eu fosse ler, porque eu queria que no momento da leitura, eu me permitisse rir, chorar, lamentar e vibrar. E que quando eu vestisse a roupa de estudante de literatura, eu tivesse a consciência de que qualquer análise tenha de partir da obra literária e, portanto, eu não utilizaria obras literárias para justificarem conceitos. Prometi que teria em mente a consciência de que a arte não necessariamente é entretenimento, mas ela também pode ser. O entretenimento “PURO” está para sexo como arte está para amor. Você paga por entretenimento e por sexo, mas não paga por arte e amor. Entendam, não estou falando de comprar uma “obra de arte”, ou, no caso, um livro, estou falando da impossibilidade de se calcular o valor das emoções que essa obra de arte causa em você. E dizer que Harry Potter e O Senhor dos Anéis não passam de textos ilustrados é expulsá-los até mesmo da possibilidade de serem obras literárias de entretenimento, de serem uma arte, mesmo que considerada, por muitos, como uma arte menor.

Provavelmente, a verdadeira deformadora de opinião, por aqui, sou eu, que enrolei por alguns parágrafos para, então, começar a falar sobre o foco deste texto. Ou talvez essa seja uma batida (mas ainda válida) estratégia de escrita que adotei, guardando o melhor para o final. Quem parou de ler o texto no primeiro parágrafo não saberá que eu me chamei de deformadora de opinião. Quem parou de ler o texto quando falei que adolescente é arrogante e pensa que é onipotente não saberá que a minha onipotência acabou quando eu tinha 12 anos, quando meu time perdeu o Campeonato brasileiro. Quem não sabe qual é o meu time, só saberá quando olhar o trequinho que contêm informações sobre o colaborador. Quem não leu o texto todo não saberá que eu sou mineira, pois não lerá a palavra “trequinho”, que acabou de me denunciar. Deixar essas informações para o fim do texto foi um mecanismo de defesa. Talvez tenha sido isso o que Peter Greenaway quis com a declaração depreciativa acerca de Harry Potter e O Senhor dos Anéis, ele quis diminuir um tipo de arte que não é compatível com o que ele considera arte, não é compatível com o tipo de arte que ele “produz”.  Talvez essa tenha sido só uma infeliz forma de autopromoção. Talvez.

Sobre a autora: Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no Twitter como @cleoamachado