Definir alguém é uma tarefa árdua e muito pessoal. As impressões que temos de cada um variam numa escala incalculável. Podemos ser amigos da mesma pessoa, você e eu, pelo mesmo tempo, mas a convivência, as histórias vividas juntas e separadas, influenciam nossa percepção. A regra também vale para si mesmo: a nossa auto imagem é quase totalmente abstrata, muitas pessoas enxergam seus defeitos nos outros. É normal notar e corrigir nossos erros nos outros; é mais aceitável do que conseguir distingui-los em nós.

Contrariando aquela sentença que roda por aí, “Definir-me seria limitar-me”, creio que definir a si mesmo é um engano constante. Reparem, por exemplo, que quando alguém fala “Odeio gente falsa”  (generalizando mesmo) traz em si muito dos traços de falsidade, a transferência de valores, isto é, quando faz alguma coisa errada e acusa as circunstâncias ou a pessoa ao lado de tê-lo feito ou influenciado, é uma das maneiras de camuflar os defeitos e exaltar outras qualidades.

Enquanto escrevo essa coluna, mando mensagens aleatórias para diversas pessoas online, via celular e até quem senta ao meu lado na produtora, pedindo uma palavra que me descreva por completo. Com quem convivo, as respostas surgiram subitamente, enquanto outros, com menos proximidade, procuram sinônimos e opções auxiliadas pelo pai dos burros. Indo um pouco mais além, os homens foram mais engraçadinhos e as mulheres mais sagazes. Algumas palavras que recebi: “leãozinho”, “delicioso”, “inefável”, “opinioso”, “expansivo”, “autêntico”, “apaixonado”, “boy-magia”, “bergamota”. Não me reconheci em nenhuma, mas admito que algumas figuram entre as minhas palavras favoritas para usar no dia a dia.

Usar apenas uma palavra é ter uma limitação, claro. Precisava desenhar esta fronteira para as pessoas não se enrolarem demais, fugirem do contexto ou mesmo refletirem muito para serem afáveis ou fingirem. Tampouco contestei a escolha. Como era de meu conhecimento o propósito do pedido, não gostaria de saber da escolha da palavra, porque perderia o critério. Se fosse gratuito, com certeza indagaria a razão. O que me importava mesmo é qual a imagem, tal qual um espelho, eu passo às pessoas e como elas interpretam o que veem. Afinal, “Ele é tipo uma abobrinha recheada”, foi um dos “elogios” que recebi anos atrás e, em primeira instância, acreditei ser menoscabador e dúbio, quando hoje parece excelente e conciso.

Um outro experimento, feito por Eduardo Liron, colaborador do Meia Palavra, foi pedir descrições dele para os seus amigos mais próximos, mas cada um deveria manter seu anonimato. Claro que após ler os comentários, ele conseguiu decifrar cada autor. Por mais que os tais íntimos-anônimos tivessem evitado a obviedade, a convivência e intimidade entregou traços que só eles conhecem e outros não notam.

O que quero dizer é que para descrever rigorosamente, o observador tem de estar de fora de um universo partilhado com a pessoa. Como um jogo de xadrez, onde sempre quem está de fora da partida consegue encontrar jogadas melhores, ver quem está na vantagem e até prever um movimento em falso. E aí vem a pegadinha: para uma pessoa saber as melhores jogadas no tabuleiro ela deve conhecer o jogo e, logo, deve participar de um apêndice daquele microcosmo. Outro impasse se forma.

Creio que é impossível alguém se definir por completo, criticar-se ou elogiar-se com exatidão. Por fazer parte do meu próprio universo posso salientar traços que nem sequer fazem parte da minha pessoa. Todos somos fragmentos que só podem ser cimentados com a ajuda dos outros, mas mesmo assim incompletos e desconstruídos.