No mais recente livro do catalão Enrique Vila-Matas, Ar de Dylan, há um dado momento em que uma das personagens se refere ao narrador como um escritor que escreveu muitos livros ao longo dos anos – quiçá livros demais, confessa o escritor – mas que, no fim, escreveu sempre a mesma obra. A ideia era melhorá-la a cada vez, era aperfeiçoá-la e, quem sabe, chegar cada vez mais perto de uma verdade.

Parece acertado, para mim, pensar que esse narrador-escritor também é, em certa medida (deixemos de lado as inúmeras considerações teóricas, filosóficas e até mesmo psicanalíticas implicadas nisso), o próprio Vila-Matas. Pois ele escreveu muitos livros ao longo dos anos. E, depois de Ar de Dylan, entendo o que ele quer dizer quando escreve que foram sempre o mesmo. Só discordo que tenha escrito demais (ou talvez eu seja apenas um desses leitores fiéis, uma das mais cruéis criaturas que habitam o mundo  literário, perdendo apenas para os editores e as viúvas).

O livro contém uma história intrincada: o narrador inominado é convidado para um congresso na Suíça a respeito do fracasso, e lá conhece Vilnius Lancastre, jovem projeto de indolente-mor que afirma receber do além mensagens-memória do pai recém-falecido e que se encontra obcecado com uma frase retirada do filme Três Camaradas, dirigido por Frank Borzage, e que atribuiu inicialmente a F. Scott Fitzgerald (“Quando escurece, precisamos sempre de alguém”) – a obsessão surge quando ele começa a duvidar dessa autoria. Além disso, fisicamente Vilnius é praticamente uma versão de Bob Dylan jovem.

A partir dessa história insólita e pouco verossímil, tanto o velho escritor quanto o jovem órfão acabam embrenhados em algo difícil de descrever, quiçá um mistério, quiçá uma conspiração ou, quem sabe, apenas uma confusão bastante literária e meta-ficcional com toques hamletianos. Juntam-se a eles, Débora, a amante do falecido; Laura Verás, a cruel mãe de Little Dylan (como é conhecido Vilnius) e Claudio Aristides Maxwell, amante de Laura e grande conhecedor do cinema da era dourada de Hollywood.

Outra personagem importantíssima, quiçá a figura central do livro todo, é Juan Lancastre – o escritor falecido e intrometido. Ele, no entanto, nunca chega a aparecer realmente no livro, é sempre uma sombra, uma memória, uma insinuação. É o ponto necessário para que Vilnius tenha ao que se opor, para que se torne paradoxal e constitua-se enquanto sujeito pós-moderno e literário: criatura múltipla por excelência, Juan Lancastre reinventava-se a cada novo livro, permanecendo eternamente jovem, sempre avant-garde. Seu filho, por outro lado, busca a estabilidade – o que é no mínimo engraçado (ou trágico) para alguém com um pai assim.

Sobrepondo surpresas e decepções, Vila-Matas constrói a sua narrativa que, apesar de bastante consistente, talvez nem seja tão importante assim. Talvez o mais importante seja o que está por trás disso: o fracasso, os eternos filhos, a paternidade e a ausência dela, a irresponsabilidade, a leveza, a verborragia da literatura, o mutismo, o local da literatura (e da arte) na contemporaneidade e a própria definição de contemporaneidade.

E são justamente esses temas que fazem com que todas as obras do autor sejam uma só, eternamente reescrita. Pois tudo isso está presente, por exemplo, em Suicídios exemplares, Filhos sem filhos, Paris não tem fim e História abreviada da literatura portátil. Vila-Matas é quase obsessivo. Mas é justamente essa repetição incessante, esse eterno reescrever que faz com que sua obra seja sempre nova, que a cada livro crie todo um universo.

E isso não podia ser mais verdade do que em Ar de Dylan: abordando os mesmos temas de outras de suas obras, até mesmo reaproveitando referências que utiliza em outras de suas obras, Vila-Matas consegue ser original. E quiçá de maneira ainda mais peculiar, pois acredito que essa seja sua obra mais meta-literária – ele não apenas escreve sobre literatura e sobre seu fazer literário, mas também parece desconstruir o próprio modo que pensa literatura.