Full disclosure é, no jornalismo, o momento em que o escritor admite contato pessoal anterior com os sujeitos e/ou objetos sobre os quais escreve, o que pode sempre resultar em preconceito ou predisposição a gostar. É uma forma de alertar o leitor de algo que, se descoberto depois, pode se voltar contra o texto e tirar-lhe credibilidade.

Falar sobre a Arte e Letra: Estórias – Edição Q torna necessário o maior full disclosure que já fiz: Thiago Tizzot, além de editor, possui uma charmosa livraria que visito sempre que posso; Antônio Xerxenesky (tradutor) é um escritor que curto e que considero um amigo; Otto Leopoldo Winck (escritor) foi meu professor em duas oficinas literárias; Mariana Sanchez (tradutora) eu encontro direto nos eventos literários da cidade; Luciano Ramos Mendes (tradutor), alguém já conhecido por vocês, é (1) um colega de faculdade, (2) uma mente que admiro e (3) alguém que também considero um amigo; Irinêo Baptista Netto (tradutor) eu conheço por causa das aulas do mestrado sobre Ulysses; e Theo Szczpanski (ilustrador) eu encontrei pela primeira vez no aniversário de uma amiga em comum, ocasião em que prometi conferir o seu trabalho.

A revista dispensa apresentações: o mesmo primor de sempre. Tão linda que me vi compelido a dar o meu exemplar ao grande João Cezar de Castro Rocha para que ele a conhecesse. Não sabia se seria fácil para ele comprá-la no Rio, enquanto é fácil, para mim, ir na Livraria Arte e Letra e comprar um exemplar novinho.

Vamos aos pontos altos da edição Q. Destaco quatro contos que me agradaram profundamente por ter tido esse primeiro contato com a obra de autores tão díspares e que me deixaram curioso a respeito de novas traduções para o português.

“O binóculo”, de Louis Couperus e traduzido do holandês por Daniel Dago, é um achado. Um rapaz compra um binóculo para assistir às Valquírias no teatro e é, pouco a pouco, levado a estranhos pensamentos obsessivos – a vaga sinopse visa preservar ao máximo a experiência de leitura das cinco páginas do conto. O início da estória – cheio de descrições e vírgulas para adendos, explicações e adiamentos – parece objetivar o desvio da atenção do leitor, para que subestime a trama e entre no modo “piloto automático” de leitura. O problema dessa maneira de ler é que ela dificulta a percepção de que algo muito estranho está prestes a acontecer, como um avião a se chocar com outro; quando nos damos conta, é tarde demais: o coração já está palpitando forte (e, estendendo a metáfora anterior, o desastre já ocorreu e as pessoas voltaram a ter medo de voar).

“O hipnotizador pessoal”, do argentino Pedro Mairal e traduzido por Antônio Xerxenesky, é uma história de amor, ainda que não apenas isso. Envolve oficinas literárias, um escritor achando sua própria voz, metaliteratura e a máxima “pessoas praticamente inofensivas também amam”. Creio que o conto dialoga com a obra do tradutor (principalmente com o conto “Amanhã, quando acordar”, de A página assombrada por fantasmas), o que, no final das contas, é apenas um bônus: as três páginas de Pedro Mairal se bastam. Em minha cabeça, coloquei o conto na gaveta de “Preciosas histórias de amor excepcionalmente curtas”, junto com Bonsai (de Alejandro Zambra), A máquina (de Adriana Falcão) e mais dois contos que li em uma oficina literária do Michel Laub.

“A prisão de Arsène Lupin”, do francês Maurice Leblanc e traduzido por Luana Azzolin, é um conto narrado em primeira pessoa sobre o “cortês ladrão [que] foi muitas vezes apontado como o equivalente francês de Sherlock Holmes”, como informa a nota introdutória. Entramos no terreno da literatura policial, ou seja, o campo mais fértil possível para o cultivo do comentário-spoiler. É divertido tanto quanto bem escrito e fluente (o tipo de adjetivo de costumamos pensar que estamos dando diretamente ao autor, esquecendo-nos do trabalho que deu ao tradutor); oito páginas que valem mais do que muito programa de incentivo à leitura.

Finalmente, o último de meus favoritos da edição: “Raposas”, de Roman Simić Bodrožić e traduzido do croata por Luciano Ramos Mendes. É um texto estranho, do tipo que me incitaria a escrever um longo ensaio para comprovar “cientificamente” que gostei realmente dele e não que eu esteja apenas empolgado por ter um amigo que traduz do croata e que sabe muito de um mundo que desconheço. Algumas das referências que me vieram à cabeça foram: o seriado Lost, a graphic novel Dans mes yeux (de Bastien Vivès), o conto “Para uma avenca partindo” (de Caio Fernando Abreu), e os romances Extremamente alto & incrivelmente perto (de Jonathan Safran Foer) e A memória de nossas memórias (de Nicole Krauss – curiosamente, esposa do Foer citado). Se você já tiver lido, me diga se o conto também o fez pensar em tanta coisa distinta: estou positivamente curioso.

As demais estórias não ficam muito atrás. “O último nefelibata”, de Otto Leopoldo Winck, se enquadra numa interessante vertente da ficção paranaense que “comenta” a tradição literária curitibana; “O enfermeiro de papá”, de Edmondo de Amicis, nos apresenta uma comovente visão sobre a solidariedade humana; a seleção “Contos da meia noite”, de Bram Stoker, inclui três pequenas janelas para o universo sombrio do autor conhecido por seu Drácula, o que as torna um bom aperitivo para quem nunca leu nada dele; com o “O palácio de Circe”, lemos a versão de um desenvolto Nathaniel Hawthorne para um dos mais famosos episódios da Odisséia (e, assim como no caso de Stoker, ficamos querendo saber mais de ambas as obras: a pessoal e a homérica, a saber); e “Quarteto fantástico” apresenta aos brasileiros a obra de mais um autor argentino – ainda que, pelos contos, eu tenha considerado o Fabián Casas menor do que Pedro Mairal, aqui não se trata de uma disputa: todos saem ganhando (principalmente o leitor).

Gostaria de, por fim, falar da beleza da revista e do papel que as ilustrações nela têm. Quem conhece a Arte e Letra já sabe que cada edição é ricamente ilustrada com temas os mais distintos – de forma que uma criança que ainda não tenha aprendido a ler, mas que já possua um apurado senso estético, certamente a pediria de presente aos pais. As gravuras de Theo Szczpanski, no entanto, não apenas me encheram os olhos, mas me fizeram pensar em sua potencial função narrativa. Confesso não ter entendido direito a função das ilustrações de um de meus livros favoritos – A volta ao dia em 80 mundos, de Julio Cortázar – mas, no caso do Theo, foi inevitável pensar em estórias que completassem os balões dos desenhos de aspecto medieval ou que unissem aqueles que representam um homem apressado, com sua maleta e seu relógio de pulso. Tudo aquilo pode não significar nada, mas acho intrigante que eu não consiga acreditar nisso.

E quando cada detalhe de uma publicação suscita tanta reflexão, de modo que nada parece irrelevante, você percebe que está diante de algo especial. Este é certamente o caso da revista em questão.