“Uma criança que é nascida e criada numa paróquia adquire familiaridade precoce com os bastidores da vida e da morte” (Ingmar Bergman)

O Centro Cultura Banco do Brasil e o Ministério da Cultura, com apoio da Embaixada da Suécia, trazem para o país a mais completa mostra desse instigante gênio escandinavo nascido em 1918 e morto em julho de 2007. Em exibição estão cinquenta obras do diretor, de seus clássicos indiscutíveis, como Morangos Silvestres (1957), a trabalhos curiosos e até então inéditos, como os comerciais do sabonete Bris (1951-1953). A Mostra Bergman esteve no Rio de Janeiro entre 8 de maio e 10 de junho, estreando no CCBB de São Paulo, na região da Sé, em 13 de junho, onde ficará até 15 de julho. Em Brasília, as exibições serão de 19 de junho a 22 de julho.

Sem dúvida uma excelente oportunidade para os fãs do diretor e do bom Cinema em geral, com ingressos a quatro reais a inteira (portanto, dois reais a meia) – uma raridade nos dias atuais. Mas nem tudo são flores no reino do Cinema: infelizmente o Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo (onde acompanho a mostra) não tem estrutura física para receber tantos espectadores. Diariamente, interessados em prestigiar as sessões se frustram na bilheteria pelos ingressos que rapidamente se esgotam. Nos finais de semana, filas se formam uma hora antes das portas abrirem e em quinze minutos os parcos setenta lugares da única sala de cinema do espaço já foram vendidos.

Assistir à mostra é, portanto, tarefa hercúlea, mas cinéfilo faz de tudo para prestigiar os filmes que gosta – raça pior do que de corinthiano – e Bergman é motivo justo o suficiente para o esforço. Assim, todas as sessões têm lotado, até mesmo a de filmes menos conhecidos, e novas filas se formam uma hora antes do início das exibições, quando liberam um lote extra de dez ingressos. A própria curadoria da mostra parece ter preparado uma recompensa pelo esforço dos fãs e assim, juntando dez ingressos de sessões diferentes, pode-se trocar por um catálogo muitíssimo bem feito, com a compilação de um vasto material publicado ao longo dos anos, incluindo ensaios de amigos e fãs (como Woody Allen), resenhas, fotos, entrevistas e escritos do próprio diretor – como, por exemplo, o ensaio “Por que faço filmes”, de onde extraí a frase do início desse texto.

Essa frase simples, perdida no começo de um parágrafo qualquer no ensaio do diretor, consegue de forma fantástica sintetizar toda sua também fantástica carreira, com doses honestas de sentimentalismo, saudosismo e também de traumas e sombras. Até agora me pergunto se essa construção despretensiosa foi de fato planejada, ou apenas um jorro emocional involuntário e cheio de verdade que só os gênios conseguem criar.

Começando pela infância, Bergman explora a “criança” naquele que talvez seja seu filme mais famoso, considerado por muitos sua obra prima, certamente seu maior filme (sessenta personagens e um roteiro de mais de mil páginas!) e em minha opinião, simplesmente intocável: Fanny e Alexander (1982). Esse ganhador de quatro Oscars (o terceiro de Melhor Filme Estrangeiro de Bergman) é uma viagem pela infância do diretor, mas onde também se permitiu invenções criativas e desvarios de sua mente inquieta. Uma obra monumental de mais de três horas de duração, o primeiro filme de Bergman que assisti, ficando imediatamente encantado.

Ainda sobre a infância, O Silêncio (1963) foi para mim uma das boas surpresas da mostra. Simples tecnicamente, mas profundo e atordoante ao explorar traumas e impulsos da sexualidade. Cheio de nuances e coisas não ditas, enquanto o menino protagonista vaga entre as confusões dos adultos, os tormentos da mãe, a doença da tia e a guerra dos homens, do mundo. O filme faz parte da chamada Trilogia do Silêncio de Deus, classificação que mesmo não tendo agradado a Bergman, é válida, pois une três filmes que parecem ter em comum a mesma irremediável desilusão à condição humana. Os outros filmes são o premiado Através de um Espelho (1961) e Luz de Inverno (1963) – e com esse último seguimos pela frase-síntese do diretor.

Bergman disse ter sido uma criança “nascida e criada numa paróquia”, então, obviamente tinha muito a dizer sobre o tema, e o fez de diversas formas, mas em Luz de Inverno (1963) faz isso por meio do silêncio. O silêncio em questão é o de Deus, que se cala à doença e à morte e aos tormentos humanos. No centro da trama, Gunnar Björnstrand – fiel colaborador do diretor, em uma de suas melhores interpretações – é o clérigo atormentado por sua fé que não mais se justifica e se esvai.

Sobre sua “familiaridade precoce com os bastidores da vida e da morte”, acredito que nada tenha sido mais brilhante e simbolicamente bem construído sobre o mistério do além-vida, tormento constante de todos nós, os vivos, que a icônica cena do jogo de xadrez em O Sétimo Selo (1957). No mesmo ano, o diretor mergulhou novamente e com semelhante vigor na agonia humana a quem a morte é iminente, com Morangos Silvestres (1957) – que tem Victor Sjöström, reconhecido diretor sueco da época, em atuação comovente.

Passear pela filmografia de Bergman permite um mergulho intenso – e de tão intenso, por vezes doloroso – nos mais diversos temas. O apaixonar-se e o fim do amor; o sexo e a sexualidade; a família e a solidão; Deus, deus-aranha e o Diabo; a infância, a Juventude (1951), a velhice e a morte; a vida que escorre por entre os dedos e o passar do tempo pelo tiquetaqueio do relógio; a identidade, a arte, a guerra e é claro, a loucura – tudo pode ser encontrado, é só procurar, e tem até espaço para algumas risadas.

É claro que ninguém é perfeito – nem Bergman, nem Fellini – e no meio dessa vasta e tão diversa filmografia encontra-se algumas obras fracas, descartáveis, que parecem apenas testes de câmera e audições, como O Rito (1969) e Da Vida das Marionetes (1980), mas também outros filmes que embora não tão celebrados pela crítica, são de muita qualidade, como Vergonha (1968).

Nessa intensa carreira de mais de quarenta anos, de cinquenta e tantos filmes e mais de uma centena de peças e adaptações teatrais, Bergman pôde contar com uma equipe fiel, começando pelo diretor de fotografia Sven Nykvist, que merece destaque pelo trabalho em Persona (1966) e pela coloração significativa de Gritos e Sussurros (1972). Entre os atores, no começo teve ao seu lado Birger Malmsten, depois trabalhou com o já citado Gunnar, seu amigo Erland Josephson (do visceral Cenas de um Casamento, 1973) e Max Von Sydow (um dos meus atores prediletos, o eterno padre de O Exorcista, 1973). Entre as atrizes, acho que Bergman foi o diretor que conseguiu juntar o grupo mais belo e talentoso do Cinema, com Harriet Andersson, Ingrid Thulin, Bibi Anderson (que pode ser vista, já idosa, numa ponta em A Festa de Babette, 1987), Liv Ullmann (brilhando em Face a Face, 1976) e já no fim da carreira, com a grande Ingrid Bergman, em Sonata de Outono (1978).

Um complexo mestre, que demanda apreciação cuidadosa e atenta, apaixonada e com boa vontade. Em tempos dos enlatados americanos, com o tsunami dos blockbuster, onde a reflexão não cabe mais em nossas ocupadíssimas agendas de cidadãos da pós-modernidade, os filmes de Bergman (e de outros importantes realizadores) se tornaram “difíceis”, “chatos”, “incompreensíveis”. A reflexão é tarefa árdua, mas vale a pena. Penetrar a superfície condimentada, sair do lugar comum e mergulhar no âmago, mesmo que doa, apreciando arte de qualidade, é um dos prazeres que se tem ao assistir aos filmes de Ingmar Bergman e uma recomendação que qualquer pessoa em sã consciência deve fazer. Por isso, eu recomendo: veja Bergman!