Há uma certa morbidez se revezando com a beleza nos versos de Emily Dickinson (1830-1886). A seleção de Isa Mara Lando, da edição bilíngue da editora Imago em parceria com o Instituto Alumni mostra como os versos da poetisa cambiam das fruições sublimes e majestosas da natureza para o sentimento de morte e desilusão com uma facilidade tão interessante quanto desconcertante. A própria história de vida de Dickinson aponta para uma introspecção simultaneamente alegre em seu isolamento, mas misteriosa e soturna em sua solidão. A maioria dos versos da poetisa norte-americana só ficaram conhecidos após sua morte.

A condição póstuma, no entanto, não privou sua obra de ser reconhecida como uma das mais famosas lavras poéticas da literatura norte-americana. Ao lado de gigantes como Robert Frost e Walt Whitman, Emily Dickinson inscreveu seu nome no cânone literário dos Estados Unidos com poemas interessantes sob vários pontos de vista, entre os quais se destacam, a meu ver – i.e., de um leitor iniciante de poesia – o contraste entre imagens belas e fortes, em tom de graça e celebração; com laivos mais pesados, com uma espécie de insinuação de desespero, ainda que relativamente velado.

No primeiro dos termos do contraste – as imagens belas e “festivas” – aparece recorrentemente a natureza. Os cenários naturais servem para mostrar a beleza incrustada nos cenários campestres e nas estações, e também para despertar os sentidos para experiências sensoriais em imagens cheias de vida e de cor:

Nature rarely uses yellow
Then another Hue
Saves she all of that for Sunsets
Prodigal of Blue

Spending Scarlet, like a Woman
Yellow she affords
Only scantly and selectly
Like a Lover’s Words (p. 22)

 

Menos usa a Natureza o Amarelo
Do que qualquer outra Cor
Guarda-o todo para o Sol se pôr
Pródiga de Azul/
Qual Mulher, esbanja Carmesim
O Amarelo, porém, é bem guardado
Tão escasso e tão seleto
Como as Palavras do Amado

 

O sentimento de alegria e de leveza que aparece no poema acima é animado por uma despreocupação folgazã, que também pode ser percebida no poema “A little Madness in the Spring”:

In wholesome even for the King;
But God be with the Clown –
who ponders this tremendous scene –
This whole Experiment of Green –
As if it were his own! (p. 27)

Na Primavera, a Demência
Faz bem até para o Rei,
Mas é o Bufão que está com Deus –
Pondera essa cena tremenda –
E diz: “Os Verdes são todos meus!”

Após flanar por tão sossegadas regiões e gozar de tais despreocupadas companhias, nas próprias breves descrições da natureza vai surgindo um elemento mais pesado, ameaçando a outrora tão tranquila campina verde e pacífica:

The name – of it – is “Autumn”
The hue – of it – is Blood –
An Artery – upon the Hill –
A Vein – along the Road (p. 23)

Seu nome – é “Outono” –
Sua Cor – é Sangue
Uma Artéria – subindo a Colina
Uma Veia – ao longo da Estrada

A beleza não se revela somente na exaltação do sublime, sua busca percorre não só os caminhos voluptuosos das sensações leves, mas também outros, delas destoantes. Dickinson adverte quanto às enganações da beleza aparentemente fácil e ao alcance das mãos:

Beauty – be not caused – It Is
Chase it, and it ceases –
Chase it not, and it abides

Overtake the Creases –
In the Meadow – when the Wind
Run his fingers thro’ it –
Deity will see to it
That You never do it (p. 26)

 

A Beleza – não tem causa – Ela É –
Tenta Caçá-la, e ela cessa –
Desiste, e ela permanece/
Tenta surpreender os Sulcos
Na Ravina – quando o Vento
Por ela corre seus dedos –
Os Deuses estavam atentos
P’ra que não logres teu intento

Os caminhos da fruição não necessária nem perfeitamente planos, alguns são tortuosos, e para transpô-los é preciso lhes enfrentar as agruras. É precisamente essa aridez que está materializada no segundo termo do contraste – as imagens pesadas -, como pode ser entrevisto nas palavras pouco esperançosas de “To fill a Gap”:

To fill a Gap
Insert the Thing that caused it –
Block it Up
With other – and ‘twill yawn the more –
You cannot solder an Abyss
With Air (p. 41)

Para preencher um Vazio
Inserir a Coisa que o causou –
Tenta bloqueá-lo
com outra – e mais vai se escancarar –
Não se pode soldar um Abismo
Com Ar

O mesmo sentimento de peso da existência – mesclado com uma contrastante visão menos mórbida da vida – perpassam a seguinte estrofe, presente no poema “Too scanty ‘twas to die for you”:

The Dying, is a trifle, past,
But living, this include
The dying multifold – without
The Respite to be dead (p. 32)

Morrer é nada, passado,
Mas a vida inclui viver
A morte multiplicada – sem
O Alívio de morrer

Dessa visão panorâmica, insuficiente para contemplar as vastidões camufladas nos lacônicos versos, mas suficientes para formar uma visão geral acerca de algumas das questões das quais trata Emily Dickinson, parece surgir uma imagem da alma e do espírito humano: atormentados por vazios aparentemente impossíveis de se soldar, animados pelas belezas coloridas e tranquilas dos momentos de paz, transitando de um a outro numa cadência que desafia sua generalização e sua apreensão por completo.

A título de (provisório) fechamento, é forçoso citar o que se parece com uma espécie de testamento da poetisa, que pode ser visto no poema “This is my letter to the World”, onde ela junta a ânsia de compreensão e retrato do mundo com a importância da natureza para sua arte poética. Há toda uma exploração da concepção de Poesia presente nos belos e sonoros versos desse poema:

This is my letter to the World
That never wrote to Me –
The simple News that Nature told –
With tender Majesty
Her message is comitted
To Hand I cannot see –
For love of Her – sweet – countrymen
Judge tenderly – of Me (p. 62)

 

Eis minha carta ao Mundo
Que a Mim nunca escreveu
Singelas Notícias que a Natureza deu –
Com Majestade e Doçura
Sua mensagem se destina
A Mãos que nunca verei –
Por amor a Ela – doces conterrâneos –
Julgai-me com ternura

(todas as traduções dos poemas são de autoria de Isa Mara Lando e constam na edição cuja referência bibliográfica encontra-se abaixo)