Na capa, uma fotografia em preto e branco, a mesma que está presente, invertida, do lado oposto do livro. Um carro rodando sobre uma estrada iluminada, delimitada por imensas margens, oceanos negros. Se você gira o livro nas mãos – partindo da capa, passando pelo miolo em papel pólen e chegando, por fim, à quarta capa –, percebe que as 420 páginas do volume conectam as duas estradas simetricamente dispostas, o que serve de metáfora visual ao que toda biografia que se preze almeja: unir as duas pontas de uma vida, tal como diz o narrador de Dom Casmurro, a vida de seu sujeito.

Jack Kerouac. Seu nome: estampado em letras amarelas, garrafais e que se assemelham à fonte típica de uma máquina de escrever. Sua alcunha, “king of the beats”, em azul, leva a pensar se a manutenção do título nobiliárquico em inglês deve-se à possível boa fama internacional da obra. “Uma biografia de Barry Miles”, em vermelho, aponta que o nome do autor do livro é um de seus grandes atrativos, o que se confirma após uma breve pesquisa: Miles viveu intensamente as décadas de que fala em suas obras e já escreveu biografias de Paul McCartney, William Burroughs, Frank Zappa, Charles Bukowski e Allen Ginsberg.

Quando, ainda no prefácio, se lê o trecho a seguir, pressente-se que o biógrafo não se preocupou tanto com o enaltecimento desmedido de um mito quanto a com dar a conhecer dados e fatos da vida de Jack Kerouac. Ainda que se reconheça que esse deveria ser objetivo de toda boa biografia, o fato é que nem sempre seus autores – ou as razões editoriais que levam uma biografia a ser publicada – são imparciais.

[…]Kerouac tornou-se ícone cultural ao lado dos jovens Marlon Brando, Elvis e James Dean.
Kerouac gerou pessoas como John Lennon. É sempre bom para a carreira morrer cedo. No caso de Lennon, ninguém pode criticar ou arranhar com seriedade sua imagem como o Príncipe da Paz e líder e expoente da vanguarda, conforme o crítico Albert Goldman constatou quando sua biografia cuidadosamente pesquisada foi descartada como ato de difamação de um morto. Na verdade, o culto a Kerouac tem muito em comum com o culto a John Lennon, sendo Kerouac uma figura muito anterior da década de 1960, e Lennon, o símbolo da de 1960. Ambos foram encarados pelo público como líderes de seu grupo, ambos morreram jovens, mas já depois do auge de sua criatividade, e ambos se tornaram objetos de mitomania, uma tela sobre a qual a juventude exteriorizava os próprios desejos e fantasias, dando pouca importância aos fatos da vida real de seus heróis.

Toda uma aura foi construída ao redor da Geração Beat, aura que nem sempre dialoga adequadamente com a realidade, com as vidas não literárias dos envolvidos com o movimento. Para os empolgados com o hype gerado pelo filme mais recente de Walter Salles, Na estrada, ou com a leitura de algumas das obras de Kerouac, como o próprio On the road, ler os fatos compilados e ordenados historicamente por Miles pode gerar alguma decepção.

Isso porque as pessoas costumam confundir: o movimento beat – precursor, por exemplo, duma maior liberdade sexual – com o movimento hippie; Kerouac (uma força centrípeta) com Ginsberg (uma força centrífuga); e, até mesmo, Kerouac com Dean Moriarty, o personagem que é a força motriz de sua obra mais famosa – ainda que ele nunca tenha deixado de explicitar que Dean era baseado em Neal Cassady, enquanto ele mesmo era apenas o narrador; um Sal meio sem sal; aquele que tudo observa. E as coisas não poderiam ser mais diferentes.

“Um verdadeiro escritor deveria ser um observador, e não sair por aí sendo observado. Observar – esse é o dever e o juramento de um escritor”, disse Jack a Al Aronowitz no New York Post.

O livro conta a trajetória do “garoto-memória”, o mesmo “que queria escrever um romance, uma peça, um livro de contos, um roteiro de rádio e ‘pelo menos uma frase imortal’”, passando pela fama até chegar a um final de vida decepcionante. Como um anjo se torna um babaca? Como um nome que representou tanto para diversas gerações morre distante dos amigos e da filha, depois de deliberadamente afastá-los? Como o “rei dos beatniks” (e não é sem ironia que a expressão é citada no décimo capítulo) morre, obeso e espalhafatoso, com uma mente tacanha e interiorana?

Como o cara que consegue terminar Big Sur com frases tão lindas e anódinas (“Algum bem sairá de todas as coisas e será dourado e eterno, simplesmente. Não é preciso dizer mais nada.”), consegue ser autodestrutivo ao ponto de levar um dos maiores porra-loucas que a Geração Beat viu a se afastar dele por não aguentar vê-lo assim?

[…] Neal [Cassady] via esse comportamento autodestrutivo em si mesmo e detestava ver Jack acabar do mesmo jeito.
Neal também detestava bebida porque o pai fora alcóolatra e ele viver cercado de bêbados. Carolyn: “Neal ficou sem falar com Jack durante muito tempo porque era doloroso vê-lo se destruir com a bebida. Parou de falar, mas nunca deixou de gostar dele, os dois foram amigos a vida inteira.”

É triste, mas é real. Tudo isso foi transcrito, após acuradas e longas pesquisas, em Jack Kerouac: king of the beats. Barry Miles cumpriu sua missão e não dourou a pílula para o leitor que queria um herói, um protagonista de um romance do próprio Kerouac.

E, dessa forma, produziu uma biografia marcante e intensa.

Allen Ginsberg: “Assim, ele bebeu até morrer. Que é apenas mais um jeito de viver, ou de lidar com a dor e a inutilidade de saber que tudo não passa de sonho e de um grande e desconcertante e bobo vazio.”

Título Original: Jack Kerouac: King of the beats
Autor: Barry Miles
Tradutores: Roberto Muggiati, Cláudio Figueiredo e Beatriz Horta
Páginas: 420
Editora: José Olympio
Preço sugerido: R$ 49,00