Até o dia 24, teremos uma “conversa por escrito” comentando os contos da revista Granta, que reúne os 20 Melhores jovens escritores brasileiros, e cada conversa abordará dois contos por vez. Confira o post anterior:

Granta: Animais e Aquele vento na praça

ANTES DA QUEDA

João Paulo Cuenca

João Paulo Cuenca nasceu no Rio de Janeiro, em 1978. Participou de diversas antologias no Brasil e no exterior e é autor dos romances Corpo presente (Planeta, 2003), O dia Matroianni (Agir, 2007), e O único final feliz para uma história de amor é um acidente (Companhia das Letras, 2010), publicado também em Portugal, na Espanha e na Alemanha. Em 2007, foi selecionado pelo Festival de Hay e pela organização do festival de Bogotá Capital Mundial do Livro como um dos 39 autores mais destacados da América Latina com menos de 39 anos. “Antes da queda” faz parte de seu próximo romance, a ser publicado em 2013.

Tuca: E aí, Liv? Esse foi o seu primeiro contato com a obra do autor? Já tinha lido antes algo do Cuenca?

Liv: Oi, Tuca! Dele só li as resenhas publicadas no blog do Meia Palavra, onde li algumas resenhas de O único final feliz para uma história de amor é um acidente. Portanto, oficialmente, meu primeiro contato com as reflexões do Cuenca foi por meio da Granta.

Tuca: Eu, por outro lado, li os três romances anteriores do autor e gosto particularmente do último, citado por você – aliás, eu também o resenhei. Estava com grandes expectativas, afinal é um trecho do novo romance do autor. Mas, sem ter lido nada além de resenhas anteriormente, o que você achou de “Antes da queda”?

Liv: De início, torci um pouco o nariz. Pensei que foi por ter sido este o meu primeiro contato com sua escrita, que eu tinha tido dificuldade na compreensão dos primeiros parágrafos, uma vez que não sabia que o texto era parte do novo livro dele. Talvez eu seja extremamente lerda, mas ele só começou a fluir pra mim lá na página 42, na parte em que ele define “comunidade”. Foi aí que comecei a prestar mais atenção. E decidi, então, recomeçar a leitura.

Tuca: Eu achei interessante a ambientação do trecho de romance no futuro, aliada a uma perspectiva crítica – com o devido equilíbrio entre pessimismo e chiste – a respeito de uma das maiores cidades do país. O exercício de futurologia tinha tudo para ter algo a ver com seu último romance, mas percebi certo distanciamento do tipo de escrita do seu título para a coleção Amores Expressos. Creio que o ponto de vista, que parece tentar prever (ainda que de um jeito mais exagerado e zombeteiro) o panorama do Rio de Janeiro no futuro, dá ao texto certa aparência de crônica – gênero em que o autor também atua, como descobri observando seu último livro numa livraria.

Liv: Eu concordo com esse termo “futurologia”. Somado a uma dose generosa de ironia, dá uma triste visão da sociedade brasileira atual. Pra mim, o conto/trecho de romance nada mais é do que uma crítica social e ao comportamento de uma grande parcela da população.

Eu também gosto quando ele cita aspectos do cotidiano, como no exemplo da página 42 já citado e, também, com o comportamento do protagonista. Uma coisa bacana é que no parágrafo anterior ele usa uns termos meio chulos, mas não os liga à “comunidade”. Achei interessante. O meu trecho favorito foi sem dúvidas a parte em que ele fala do Brasil “posterior a 2014”. Arrancou-me uma gargalhada involuntária. Porém, visto como um todo, acredito que esse trecho não seja as primeiras páginas do próximo livro dele, já que não mostra muito do personagem principal, situando apenas o local em que ele está inserido. Isso, penso, dificultou minha leitura.

Tuca: Eu até entendo as razões pelas quais você gostou destes excertos, mas confesso que foram eles os que mais me causaram dificuldade durante a leitura. Simplesmente porque não é algo que procuro no que leio: ao menos assim tão explicitamente. Sei que tem gente que curte toda essa vibe de comentário escancaradamente social, mas não é algo que atraia em particular. No meu resumo de impressões que fiz – pretendia falar de todos os contos n’o leitor comum, mas já larguei mão disso – anotei “interessante, mas não me interessa” como forma de descrever isto.

Outra coisa de que não gostei é que senti algo de Corpo presente e de O dia Mastroianni nesse trecho. O Rio de Janeiro como personagem (CP), o nome duplo do protagonista (ODM)… Eu meio que gostei um pouco de ambos quando li, mas, hoje, com maior distanciamento crítico, não conseguiria recomendar para ninguém. As leituras fluem, ambos você lê rapidinho, são legais de contar para os amigos antenados que você já os leu, mas, depois de um tempo (que foi bem pequeno, no caso de O dia Mastroianni), você percebe que não vê o que tanto o povo viu naqueles livros. São bons, nhé, mas não tem nada de mais, iguais a tantos outros.

O único final feliz para uma história de amor é um acidente, por outro lado, toda vez que tento revisar minha opinião sobre o autor em geral, continua como uma das melhores leituras que fiz em 2010. É uma obra que, creio, é consistente, bem escrita e bem acabada. Tem uma força particular. Pelo valor dessa obra, o nome dele deveria, sim, estar entre os escolhidos da Granta, na minha opinião. Se ele seguisse nesse sentido, eu creio que teria gostado bastante de “Antes da queda”. Como a leitura, no entanto, me lembrou a de suas primeiras obras, ficou um gosto de retrocesso, um travo na garganta.

Espero que, após a finalização e edição da obra, essa impressão mude.

Liv: Mas tudo isso não se dá pela impressão de que, analisando como um todo, a história parece ser um trecho do “meio” e não do “início”? Aliás, essa coisa de trecho me irrita. Me senti solta dentro da história, tive que correr atrás para entender onde eu estava inserida como leitora e com quem eu conversava. Eu gosto de histórias ácidas e críticas, gosto porque são divertidas e geralmente saborosas, em “Antes da queda” existem uns parágrafos bem legais, mas eles não seguram o enredo como um todo. Ao final eu fiquei sem saber ao certo quem era o protagonista (seria o Rio de Janeiro e toda a sua cultura?) e sobre o que o conto/trecho se tratava. Seria o “passado do Rio de Janeiro”? “A sociedade carioca”? “O comportamento brasileiro”? Ou uma pequena crítica a isso tudo? São muitas questões para uma história curta. Não desmereço de forma alguma o trabalho do Cuenca, já que torno a lembrar: é a minha primeira vez sendo leitora dele. Mas que ficou um gosto de “quero mais”, ah, isso ficou.

Tuca: Sei lá, pareceu-me ser o começo da história. Um começo que me faria abandonar o livro, no entanto. Encontrei aqui e ali pedaços de prosa que antigamente me agradariam, mas que hoje em dia não conseguem provocar o mesmo efeito. Nada que uma boa revisão/edição não possa consertar.

Mas, provavelmente, lerei o livro; principalmente se alguém me assegurar a qualidade dele. Por ora, no entanto, estou passando bem sem ler: minha curiosidade não foi suscitada.

Liv: Concordamos mais uma vez. Provavelmente eu continuaria com a história porque eu gosto de doses de humor ácido, mas não sei dizer se esse fragmento de “Antes da queda” me faz querer ler o livro inteiro. Não sei se deu pra entender meu raciocínio, mas acredito que o próximo livro dele tenha mais a apresentar do que esse trecho na Granta. Fecho contigo: minha curiosidade não foi aguçada, por enquanto paro por aqui também.

O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO AQUI

Luisa Geisler

O livro de estreia de Luisa Geisler – Contos de mentira (Record, 2011) – foi escolhido pelo prêmio SESC de Literatura 2010/2011 na categoria conto. No ano seguinte, o mesmo prêmio escolheu sua novela de estreia – Quiçá (Record, 2012) – na categoria romance. Atualmente ela é colunista da página final da revista Capricho. Luisa nasceu em 1991 em Canoas, RS. Contudo, passa boa parte do seu tempo em Porto Alegre, estudando Ciências Sociais (UFRGS) e Relações Internacionais (ESPM/RS), e escrevendo sentada no chão do metrô.

Dindii: Tive a sensação, quando estava lendo o conto, de que ele é um resumo de zilhões de conversas que tive sobre trabalho, correrias da vida e escolhas. Essa coisa de você escolher um emprego que não te dá paz e até gostar dele, mesmo que ele o faça abdicar de mil outras coisas. O tema é bem “lugar-comum”, mas gostei da escolha e da forma como foi trabalhado. A Luisa Geisler usa a palavra Weltanschauung repetida várias vezes, pra separar um momento de outro no texto e deixar um questionamento ou reflexão entre esses instantes, pelo menos foi a forma que eu vi.

Weltanschauung, é uma expressão em alemão que significa algo como filosofia de vida/ideologia. Welt (mundo) + Anschauung (olhar). O conto todo é bem fácil de ler, tirando essa quebra, que no início me deixou com um ponto de interrogação na cabeça até que depois me acostumei. Pra mim, é o ponto de respiro em que alguma reflexão no meio de um dia a dia caótico do personagem.

Gigio: Não há como negar que esse “Weltanschauung” chama a atenção no conto. Uma das suas funções, como você disse, é bem clara, separar diferentes momentos na história. Além disso, a princípio pensei também que representasse uma reflexão do personagem, como uma epifania em meio ao cotidiano. O primeiro deles, por exemplo, diz: “O que você deveria fazer?”, como se Lucas por um instante pensasse nos rumos que tem a sua frente. Mas essa interpretação perde força nos outros casos. “A sua língua está parada no lugar certo dentro da sua boca, não está?” não parece um pensamento relevante para o personagem… Mas e para o leitor? Nós, lendo silenciosamente, conseguimos perceber que nossas línguas estão no lugar certo? Essa me parece a verdadeira função oculta desse Weltanschuung: provocar a atenção do leitor, pedir que ele saia da história de Lucas para uma visão mais ampla e questione sua própria história. Vendo dessa maneira, é como se diz hoje em dia, um mindfuck. Chega a ser engraçado perceber que em meio ao texto há algo que nos pergunta simplesmente: “oi, tudo bem?”.

Das resenhas que li, nenhuma pareceu entender essa proposta da Geisler. Acho isso bastante triste, primeiro porque os novos escritores costumam ser criticados por se arriscarem pouco e, pronto, quando fazem algo diferente, são tratados como tolos. Incoerência, para dizer o mínimo. E também, porque parece uma certa perseguição pessoal, como se assumissem logo que alguém tão jovem fosse incapaz de criar artifícios interessantes, não é mesmo?

Dindii: Pensei exatamente isso quando comecei a ler algumas críticas da Granta. Tudo bem que, em teoria, todos os autores que integram a coleção são “novos”, mas vários deles já têm algumas obras publicadas e um certo nome no meio. A Granta fez uma seleção que não revela ninguém, mas aponta gente que já está se destacando por aí antes dos 40 anos.  Já a Luisa começou a aparecer no ano passado e talvez seja uma das grandes surpresas da lista.

Gostei disso que você falou sobre ter algo no texto que conversa com você, leitor. Parando pra pensar, é um ótimo recurso também pra fazer a pessoa que está lendo voltar atenção novamente ao conto. É algo como “ei, você está aí ainda, né?”.

Agora, mudando um pouco do assunto Weltanschauung, queria falar do que eu mais gostei do conto, que é quando o Lucas volta pro apartamento dele e não consegue entender porque algum dia achou que seria uma boa ideia morar num edifício sem elevador. Achei essa parte muito boa, assim como a que ele conta que se esforça pra ver os amigos que não tem nada em comum. Foi um jeito muito sutil de demonstrar como o personagem está mudando: um belo dia ele simplesmente não se encaixa mais naquele lugar que ele mesmo um dia construiu.

O jeito que a Luisa escreveu esse conto é bem uma divagação do personagem. Parece ele conversando consigo mesmo e as conclusões vão ficando por nossa conta, né?

Gigio: Verdade, o leitor como que espiona essas divagações, que são entregues de maneira até bem cruas. Às vezes são apenas percepções imediatas, como no momento em que Lucas está enfrentando aqueles lances de escada até o seu apartamento do sexto andar e só consegue se concentrar em um degrau após o outro (“Subo o outro degrau. Subo o outro degrau. Subo o outro degrau.”) Outras vezes, o personagem se expressa de maneira bem coloquial, como nas repetições de “ela” e “dela”. Mas afinal, hoje em dia, tirando aqueles que receberam muitas marteladas acadêmicas, alguém pensa na forma de próclises e ênclises?

Na minha opinião, essa é a maior qualidade do conto da Geisler: sua ousadia na hora de escrever, de dizer “correr o corredor” quando acha adequado. Só que, claro, isso não é tão simples quanto parece. Acho que vários outros escritores da coletânea não têm a mesma capacidade para encontrar o ponto de equilíbrio necessário. Adaptando às palavras o que ela mesma diz no texto sobre o jeito com as pessoas, é preciso “usar o tom certo na hora certa, saber quando ousar, quando parar, isso não tem escola ou curso que ensine.”

Mas voltando à questão das divagações, não sei também se essa maneira de contar as coisas não acabou prejudicando uma melhor definição do personagem. No fim das contas, o Lucas me pareceu só mais um tipo executivo genérico.

Dindii: Mas é ai que tá. O Lucas é só um executivo qualquer mesmo, eu também achei. Mas não considerei isso exatamente como algo ruim, pelo contrário: acho que isso que me fez gostar dele.

Ele é um executivo que poderia ser qualquer um desses engravatados que passam por mim quando estou andando aqui por São Paulo. Eu mesma já fui meio Lucas tantas vezes. Lendo esse conto, me lembrei muito de um filme chamado Medianeras, assistiu? Ele tem sido bem recebido pela crítica e púbico por ser uma narrativa que fala sobre os efeitos das cidades grandes, modernidade e trabalho excessivo nas pessoas. Os personagens desse filme são bem como o Lucas: a gente (to falando “A gente”, mas sou eu) cria uma simpatia, gosta deles, justamente por eles poderem ser qualquer pessoa.

Gigio: Não sei se entendo… Não vi Medianeras, mas será que não é uma falsa impressão de generalidade? Como naqueles memes que brincam com o fato das pessoas se identificarem com o Sheldon de Big Bang Theory, como se ele fosse como qualquer nerd, quando na verdade é um personagem de características bem marcantes e, mais importante, que usa muito do próprio Jim Parsons (fica mais fácil para o cinema e a TV, com todas as referências visuais imediatas).

Não é que esteja dizendo que o Lucas seja um personagem totalmente vazio, mas acho que a Geisler, que me parece uma escritora que realmente merece estar na Granta, poderia ter feito algo com mais densidade, mais vida. Mas talvez não tenha mesmo entendido sua proposta para o personagem, quero/preciso conhecer o livro dela que saiu agora pela Record.