Assim como seu conterrâneo Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll (1946) é uma figura estabelecida em nossos meios literários, ainda que não seja tão estudado entre acadêmicos, por exemplo. O escritor gaúcho já ganhou diversos prêmios, inclusive o Jabuti cinco vezes, e já firmou seu caminho na ficção brasileira das últimas décadas. Sua obra talvez não seja lida por todos justamente por esse caminho, que explora aspectos da realidade de uma minoria muitas vezes oprimida, os homossexuais.

Em um de seus romances mais recentes, Acenos e afagos (2008), que rendeu o segundo lugar ao autor no prêmio Portugal Telecom de 2009, percebe-se claramente que a ousadia na abordagem da sexualidade pode afastar algumas pessoas, mas é claro que atrai outra parcela de leitores também. Não se trata de um romance água-com-açúcar, como uma versão homossexual do tradicional Sabrina de banca de revista, mas sim uma obra que questiona certos padrões morais da sociedade, algo que certamente deixa algumas pessoas assustadas.

O que temos em Acenos e afagos é uma espécie de epopeia do corpo em seu desenvolvimento sexual através de um parágrafo único, sem qualquer divisão em capítulo. A questão de gênero perpassa todo o romance, já que o constante questionamento sexual da parte do narrador-personagem se torna uma obsessão. Desde a infância do narrador-personagem quando começa a nutrir uma atração crescente pelo “amigo engenheiro”, cujo nome nunca nos é dado. Ao longo das várias experiências do narrador-personagem, inclusive com sua esposa, permanece uma busca por mais sexo entre “acenos” e “afagos”, entre demonstrações de atração ou até mesmo de afeto. Sua insaciabilidade física parece perturbá-lo cada vez mais, perturbando também a narrativa, que começa a se tornar mais absurda com o surgimento de um submarino alemão cheio de sodomitas em Porto Alegre, cidade onde o enredo se inicia.

Em certo momento, quando finalmente consegue se realizar sexualmente com o amigo, o narrador descreve como começa a se identificar mais com o gênero feminino. Seu desejo de ser a “esposa” do amigo o leva a transformar-se biologicamente em mulher no sentido comum da palavra, inclusive com mudança gradual da genitália. Tornar-se mulher biológica aqui parece só fazer parte de um processo já consolidado na mente do narrador-personagem, que pretende adotar de qualquer maneira a figura feminina tradicional para si, apesar das contradições que isso pode gerar. O que pode se observar é como nossa visão comum de sexo e gênero parece não funcionar em Acenos e afagos. Entre os conceitos clássicos de “homem” e “mulher”, uma nova figura se forma pelo corpo desde criança e busca na prática criar um lugar para si à margem.

Há uma noção de unidade no romance, que a todo tempo nos transporta entre tempos e não faz questão de deixar claro o que é “real” e o que é “imaginário”. Talvez não seja realmente necessária essa distinção, pelo menos nesse mundo construído por Noll. Temos, acima de tudo, um romance fantástico, em que questões amorosas e sexuais determinam tudo o que acontece e podem até mesmo alterar possibilidades dentro da realidade narrativa. Nada parece acontecer em uma relação de causa e efeito, sendo que a unidade do romance está em sua fragmentação interna, que nos impede que uma linearidade nos ofereça uma conformidade ilusória. Há de ser confuso para tratar de uma confusão como a proposta na obra.

Acenos e afagos, além de mostrar a capacidade de Noll como romancista, mais uma vez nos mostra as possibilidades do absurdo e do grotesco na literatura. A ironia, como pode se imaginar, também tem espaço em uma narrativa que também ri de seus fatos e questionamentos. Ri-se do que não parece racional e aceitável socialmente, porém não se deixa de pensar a respeito da causa do riso. Entre o riso e o gozo, permanece o convite à crítica que parece fundamentar a obra de Noll, certamente uma escolha digna para o leitor atual diante de nossa sociedade.