Como se costuma dizer que V de Vingança é uma história típica dos anos 80, vale a pena entender o que fez com que Alan Moore a escrevesse. Não é o temor de uma guerra nuclear que o motiva, mas as desculpas que figuras de autoridade usavam (e ainda usam) para tomar iniciativas brutais contra possíveis “ameaças”. A diferença incompreendida, que se torna ameaça pelo simples fato de não ser como nós. Foi isso, e não a guerra nuclear que motivou o totalitarismo descrito na HQ.

Mais uma vez, assim como em outras resenhas sobre HQs dessa década, vale a contextualização: Alan Moore, inglês de tendências anarquistas e declaradamente adepto de um modo de vida heterodoxo, se via numa possível rota de colisão com o mundo que Thatcher e Reagan idealizavam. A mesmice e acomodação eram plenamente valorizadas nos dois países; os Yuppies eram os vencedores e uma série de direitos trabalhistas e sociais estavam em vias de extinção devido ao simplório discurso de eficiência da máquina do Estado, que não poderia arcar com gastos desnecessários, segundo os neoliberais. Um pequeno esclarecimento pode ser útil aqui, no entanto. O que caracteriza o discurso neoliberal não é exatamente a necessidade de Estado mínimo;  mas que toda a sociedade, inclusive o Estado, tenham como princípio que a eficiência é o parâmetro de uma vida racional.

É como se Alan Moore dissesse, portanto, que apesar de todos os esforços, o totalitarismo é uma ameaça constante. Por mais que nos voltemos para o passado, tentando evitar os mesmos erros, ele consegue se infiltrar em nosso modo de vida e contaminar a sociedade. Ao menos essa é a leitura que fez em meados dos anos 80, quando imaginava que a Inglaterra e os EUA estavam dando passos largos em direção ao fascismo.

Mas, como disse, é o grande temor de lidar com a diferença que realmente motiva os fascistas a tomar o poder nessa possível Inglaterra e a guerra é apenas a desculpa para isso. Ou seja, é nesse ponto precisamente que a história sempre vai ser atual, porque o caos, a eterna desculpa para os fascistas tomarem o poder, sempre vai tomar novas formas em seus discursos. Bush apelou para a necessidade de evitar o caos de uma nova ordem mundial em que o terrorismo assumia o poder e tentava se legitimar (não que os EUA tenham se tornado um Estado totalitário depois do 11 de setembro, mas o discurso acaba tendo o mesmo mecanismo); foi justamente para evitar o caos que os militares tomaram o poder no Brasil; é para evitar o caos que organizações de direita promovem passeatas nas grandes cidades brasileiras de alguns anos para cá…

Há uma outra mensagem também. Essa talvez até mais perturbadora que a anterior. Todos os personagens com os quais V interage são pessoas comuns, com trabalhos e necessidades normais. Nenhuma delas contesta o regime porque ele trouxe segurança e regularidade. O que mostra que o ímpeto revolucionário não é dado, que a indignação se constrói de maneira árdua e lenta. O mais comum, num regime totalitário (e em qualquer outro), é que nos acomodemos em nossa zona de conforto, imaginando que a vida é exatamente o que nos dizem ser. V, ao contrário, mostra tudo a que as pessoas renunciaram apenas para ter a garantia de que o que tem não corre risco. Ou seja, nossa natureza mesquinha, a tendência de nos apegarmos a pouco, desde que seja nosso, em lugar de ter muito, mesmo que seja de todos.

Por todas essas características, e evitei falar das grandes qualidades na condução da história e do incontestável talento de David Lloyd ao dar forma a esse pesadelo, é que essa HQ sempre será atual. Ainda em tempo: serve como uma boa introdução a todos que sempre ouviram falar de anarquismo mas que foram levados pelas ideias do senso comum, que o associam à ideia de caos.

Sobre o autor: Marcelo Gabriel Delfino é sociólogo e vê política em todos os lugares, menos onde ela deveria estar…