Até o dia 24, teremos uma “conversa por escrito” comentando os contos da revista Granta, que reúne os 20 Melhores jovens escritores brasileiros, e cada conversa abordará dois contos por vez. Confira os posts anteriores:

Granta: Animais e Aquele vento na praça

Granta: Antes da queda e O que você está fazendo aqui

Granta: Tólia e Apneia

Granta: Valdir Peres, Juanito e Poloskei e O jantar

Granta: Noites de alface e Mãe

Granta: Temporada e F para Welles 

A FEBRE DO RATO

Javier Arancibia Contreras

Javier Aracibia Contreras nasceu em Salvador, BA, após sua família migrar do Chile durante o período de ditadura militar, mas vive desde a adolescência em Santos, SP. Escreveu os romances Imóbile (Editora 7Letras, 2008), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, e O dia em que eu deveria ter morrido (Editora Terceiro Nome, 2010), premiado com uma bolsa literária do Governo do Estado de São Paulo. É também roteirista de cinema e, durante os anos em que trabalhou como repórter policial, escreveu um livro-reportagem/ensaio biográfico sobre o dramaturgo Plínio Marcos (A crônica dos que não têm voz, Boitempo Editorial, 2002).

Anica: Eu fiquei bastante surpresa com “A febre do rato”. Não sabia bem o que esperar no começo, mas, em poucos parágrafos, o Contreras foi chamando minha atenção. São pequenos elementos-chave que ele coloca como se estivesse falando do tempo e que aos poucos vão criando a curiosidade: a perna quebrada; a morte da mãe, que fez com que ele ficasse daquele jeito, etc. O que diabos aconteceu com ele? E aí você vai lendo como se seguisse migalhas de pão, para ver até onde aquilo poderia chegar. A culpa que ele sente pela falta de contato com a mãe é evidente, mas isso acaba se desdobrando em uma curiosidade a respeito do motivo pelo qual ele acabou saindo de casa. E assim vai, até que você chegue na conclusão – que na verdade é o começo do conto. Dá para chamar de narrativa circular, não?

Gigio: Verdade, o conto tem mesmo uma circularidade interessante. Até voltei ao texto para ver se encontrava alguma prova da precedência de uma das partes, mas não achei nada muito certo. E me parece que isso tem tudo a ver com a ideia de um homem meio febril, meio delirante. Por outro lado, esse efeito só aparece porque a segunda parte começa com o narrador despertando de um cochilo, o que é um recurso meio ordinário, não?

Agora estou conseguindo ver os pontos positivos do conto, depois que você começou a apontá-los, mas ainda há várias coisas que me desagradaram. Além desse momento “será que foi tudo um sonho?” há outros em que o Contreras segue caminhos meio batidos, na minha opinião. Por exemplo, quando o narrador-personagem se revela, no fundo, um escritor enrustido (ainda que se passe por tradutor). Concordo com o que a Taize escreveu na última coluna dela, de que existe hoje um exagero da literatura citando a si mesma. Isso para apontar um caso de maior proporção, mas existem outros, espalhados, como os “brinquedos da infância dispostos ordenadamente em prateleiras” ou o padrinho que ele identifica pela “enorme cicatriz no rosto”, uma coisa muito “vilão de desenho animado” para o meu gosto.

Não te incomodou nada assim?

Anica: Não entendi. Sobre os brinquedos na prateleira você achou batido ou achou que tinha algo a ver com literatura falando de si mesma? Se for o segundo caso, de que maneira você vê isso exatamente? Se for o primeiro, eu acho que é um elemento para reforçar a presença materna, o conto todo incide na culpa que ele sente por ter se afastado da mãe. E olha, colocando uma visão pessoal da coisa, meu marido nem se separou dos pais de forma tão definitiva (só veio para a cidade trabalhar, enquanto eles ainda vivem no interior), mas algo que chama minha atenção quando visito meus sogros é exatamente isso: livros e brinquedos da infância dele, arrumadinho, como preservando um momento que não voltará mais.

Agora de Literatura dentro da literatura realmente está virando uma constante, mas pessoalmente não é algo que me incomoda. O que achei meio chato, isso sim, foram as citações do livro que a personagem estava traduzindo. Entendo que era um recurso para explicar a separação dele e da mãe, mas às vezes simplesmente contar o motivo pelo qual aconteceu teria funcionado melhor.

E o rato cheirando cocaína? Ri muito nessa parte.

Gigio: Não repare na bagunça, o item “prateleira de brinquedos” vai dentro do grupo “caminhos batidos” que vai dentro de “coisas que me desagradaram”. E, claro, não é que seja agora proibido deixar os brinquedos em prateleiras, o problema é como isso entra no texto. É uma imagem que de fato evoca a infância, mas de uma maneira genérica, sem personalidade, como dizer que o quarto de um adolescente tem muitos pôsteres pelas paredes. Não fica parecendo uma representação pessoal, mas quase alegórica. Não sei se ficou claro, acho que aquele outro exemplo que citei é mais fácil de entender, o da cicatriz: parece que o Contreras precisava de uma maneira de explicar como o personagem identifica o padrinho depois de tantos anos e para isso sacou a “enorme cicatriz no rosto”. Falta um pouco mais de sutileza, na minha opinião. Desse jeito os mecanismos da narrativa ficam muito expostos.

Para não ficar nesses aspectos tão etéreos, deixa eu falar de umas outras coisas que me desagradaram, que são mais palpáveis. Você não achou que o Contreras tem uma certa inclinação para palavras rebuscadas? Pegue a primeira página. Ele não está em um “quarto”, mas em um “cômodo”; os remédios não “dão sono”, eles “provocam sonolência”; enquanto os móveis têm um “posicionamento intocado”. Eu achei meio over, me senti incomodado. Há também frases que parecem ter se enrijecido ao ponto de se tornarem quase incompreensíveis, por exemplo: “Nenhum silêncio é absoluto e, ao contrário do apartamento onde moro, mesmo sendo isolada a casa parece ter seus próprios ruídos.” Qual o sentido da oposição entre o apartamento e a casa? Mais ou menos barulhento? Ou mais ou menos isolado? Outro exemplo desses: “(…) eu nunca teria essa iniciativa, porque esse é um hábito que genuinamente não é meu, apesar de tê-lo tido durante toda a minha vida familiar.” Hábito que genuinamente não é meu? Vida familiar? Me parece uma forma tortuosa demais para dizer que a mãe lhe levava a jarra com água, se entendi bem…

Talvez você descarte algum desses exemplos, mas foram apenas alguns que retirei da primeira página. Para mim “A febre do rato” foi uma leitura como andar em pedregulhos.

Também não entendi o sentido das citações. Achei até confuso, porque me parece que Lazar Ganchev, o protagonista do livro russo, tem uma atitude muito mais positiva em relação à vida. Ele tem horror à guerra, tem vontade de viver, enquanto o personagem do conto em si se arrasta e sente satisfação ao sofrer o acidente de carro. Mas fiquei curioso, como você acha que essas citações poderiam explicar a separação entre mãe e filho? Ah, usei o Google Tradutor (não resisti) e o título russo corresponderia a “o som de faca arranhando pedra”, uma expressão que aparece também na página 173. Isso te diz alguma coisa ou será apenas easter egg?

Acho que até ri nessa parte do rato, mas já estava muito indisposto com o texto para talvez me divertir. E não estou querendo ser chato, só não tem jeito, este foi um dos poucos da Granta de que realmente não gostei…

Anica: Nossa, juro que não senti esse incômodo todo que você sentiu. Para mim o texto fluiu bem, na verdade se for o caso das citações (que depois acredito ter encontrado uma razão de ser) só fiquei um pouco agoniada com as descrições iniciais porque enquanto lia imaginei um quartinho quente como o inferno e eu não suporto calor hahaha.

Sobre as citações, acho que as partes que explicam o que aconteceu com a mãe dele são estas aqui:

“Na guerra, a presença das mães não é física, mas está sempre ali, na iminência da morte”.

e

“Sabia também que, caso levasse adiante seus planos, jamais a veria de novo, mas isso provavelmente também aconteceria se ele decidisse ir à guerra. A única diferença era o fato de estar vivo em uma situação e talvez morto, na outra”.

Então o que acabei concluindo é que houve um momento de escolha na vida do protagonista, que implicaria um distanciamento da mãe, e mesmo estando ciente da consequência da escolha ele seguiu por esse caminho, e por isso se tortura tanto após a morte da mãe, ou, como você diz, “sente satisfação após sofrer o acidente de carro”. Ele se culpa por isso, por não estar lá quando a mãe morreu, por ter se tornado um estranho na vida daquela mulher.

Gigio: Entendi, faz sentido. Mas parece mesmo um recurso exagerado: outras partes da história já haviam mostrado que o personagem havia partido e não voltara mais, sequer mantendo contato por telefone.

O motivo da separação parece que fica em aberto, né? Como um objeto para especulações. No finalzinho do conto ele comenta que nem os parentes deveriam saber o motivo desse distanciamento entre mãe e filho. Embora a gente tenha uma ideia de que a culpa seria do personagem-narrador, tanto pelas citações, como você disse, quanto por outros elementos, como o mutismo dele nas poucas vezes que ligara para a mãe.

Anica: Então, nisso que acho que foi uma decisão dele, já que ele nitidamente se sente culpado. Mas o motivo real da separação de fato não fica claro, ou pelo menos eu não consigo lembrar de algum momento em que tenha ficado. Às vezes para o autor o importante não era o motivo, mas o efeito da separação e depois da morte da mãe para a personagem, não?

Gigio: Verdade, nem é crucial mesmo saber o motivo da separação. Mas bem que ele aproveita para fazer um certo suspense em cima disso… Enfim, fico com a sensação de que talvez tenha sido muito crítico em relação ao conto, mas estão aí minhas razões, para quem quiser concordar ou não. Para não ser injusto, vou procurar um dos romances publicados do Contreras e me dar uma segunda chance como leitor. Essa é uma vantagem do “efeito Granta“, o prestígio sempre pede mais um crédito.

 

FAÍSCAS

Carol Bensimon

Carol Bensimon nasceu em 22 de agosto de 1982, em Porto Alegre. Fez mestrado em escrita criativa na PUCRS e viveu dois anos em Paris. Alguns de seus contos foram publicados em revistas e coletâneas. Seu primeiro livro de ficção, composto por três novelas, é Pó de Parede (Não Editora, 2008). Em 2009, publicou pela Companhia das Letras o romance Sinuca embaixo d’água, finalista dos prêmios São Paulo, Jabuti, e Bravo!. O trecho publicado na Granta faz parte de seu novo romance, Faíscas.

Dindii: “Faíscas”, da Carol Bensimon, fala sobre duas meninas que viajam de carro pelo Rio Grande do Sul. Entre essa viagem, conhecemos um pouco da história delas e o que as conduziu àquele momento. Então, Anica, começando pelo título, o que você achou dessa escolha?

Anica: Então, como eu tenho dificuldades enormes para criar títulos, acho que sou meio maníaca com isso. Então já na primeira leitura do conto assim que meus olhos bateram na palavra “Faísca” eu circulei bem grande para ver se dava alguma dica da escolha do título. E pareceu que sim – como faz referência à vontade de sair por aí numa viagem sem destino, a faísca, então, seria esse impulso.

Gostei muito, muito mesmo do conto. Uma coisa que chamou muito minha atenção: as imagens que a Bensimon vai criando descrevem não só lugares ou situações, mas também sentimentos. O texto fica rico e, ao mesmo tempo, a empatia é imediata. Como, por exemplo, em “Podia sentir sua respiração atravessando o oceano e quase naufragando antes de reencontrar terra firme”; ou ainda em “Tinha a impressão de que, com a ponta do indicador, eu poderia escrever ‘lava-me’ no ar”.

O engraçado é que, apesar das descrições bem precisas, eu não conseguia deixar de imaginar as duas personagens em um conversível, em um esquema meio Thelma & Louise.

Dindii: É verdade. Essas comparações chamaram bastante a atenção na minha leitura também. Também sou meio obcecada com essa coisa de títulos, então, quando chega ali no finzinho do conto e ela faz uma breve explicação entre os impulsos e faíscas, achei maravilhoso.

Tudo no texto é muito natural, me pareceu. Temos evidências de que as duas personagens que protagonizam a história têm um passado não muito bem resolvido e estão se aproximando. Gosto da parte em que diz “Toda ideia boa já foi uma má ideia”. É uma observação super simples, mas que faz todo o sentido, por mostrar o receio contra a vontade de realizar algo.

Outra coisa que me levou a gostar muito do conto foi a identificação que tive com ele, sabe? Primeiro, por eu morar longe da minha mãe, assim como a personagem principal. E, além disso, sabe o pensionato que a Juliana morava durante a faculdade dela? Se chama Maria Imaculada. Tem no Brasil todo e eu morei em um aqui em São Paulo, no início da minha faculdade também. É claro que sem isso acho que também gostaria do texto como um todo, mas por ter esse elemento a mais, acabei me sentindo muito mais próxima da narrativa.

Anica: Sobre a identificação, você veja só: mesmo não tendo passado por uma situação igual à da personagem, ainda assim acabei me identificando (até com a mãe eu me identifiquei um pouco, aquela coisa sobre ter a obrigação de sair de casa). Acho que é o tipo de coisa que só acontece com personagens bem construídos: quando você consegue ver não só um tipo ali, mas uma pessoa, que poderia ser você ou alguém próximo. Aquele momento em que ela descreve o olhar dela sobre uma vizinhança que ela conhecia, mas que agora é estranha é fantástico – já passei por isso várias vezes.

E eu fiquei curiosa sobre a história das duas que antecede a viagem. Não que lendo Faíscas como conto seja necessário saber (elas eram bem próximas e tiveram um momento em que se afastaram, provavelmente por conta da viagem a Paris da protagonista), mas fica aquela vontade de saber mais sobre elas.

Dindii:  Ah sim, a identificação acontece assim mesmo como você falou; por isso, disse que gostaria da história de qualquer forma. Mas essa coisa a mais, de dividir o mesmo espaço físico de uma das personagens, é tão amor.

Sobre o que antecede a viagem delas, também fiquei bem curiosa. A Bensimon solta, no texto, dicas do que pode ter acontecido. Em um momento é a mãe que pergunta algo como “mas você e a Juliana não tinham brigado?” Em outro, é a Juliana que revela que os pais dela estavam meio furiosos com a viagem.

Ainda em um outro momento, tem aquele caso das botas, que achei um momento muito interessante da narrativa.  A personagem principal usa botas compradas na França e um senhor bate no vidro do carro para criticá-la. Depois, a amiga fica soltando comentários inconformada com a situação, o que incomoda ainda mais a protagonista. O que você achou dessa parte?

Anica: Eu posso estar completamente enganada (e só vou saber quando ler o romance, haha), mas momentos como esse do homem batendo na janela (inclusive a curiosidade da narradora sobre o que a companheira de viagem achou disso), fizeram com que eu pensasse que elas tinham na realidade um caso mal resolvido. Como se de repente aquela viagem fosse também uma chance de reatar não só uma amizade, entende?

Dindii: Aha! Achei a mesma coisa. Curiosidade de saber se é isso mesmo. Alguns pontos do texto entregam isso, mas essa parte da bota talvez seja a maior dica, porque afinal, se fosse apenas uma ofensa sobre a bota, não teria todo aquele climão envolvido.

Agora, nada fica tão evidenciado, então pode ser só uma sensação nossa mesmo. O fato é que dá muita vontade de saber o que acontece a seguir, como vai ser essa viagem e que briga elas tiveram. Ai, meu Deus!

Anica: Olha, mesmo caso do que com “Apneia” do Daniel Galera: o texto enviado é trecho de romance, mas pode ser lido como conto sim, como um conto bom. Mas nossa, como dá vontade de ler logo o livro.