Meu telefone tocou e antes do meu “alô” a pessoa na outra linha desembestou a falar: “Felippe, é a Tati do Cultura Livre. Você recebeu meu e-mail, certo?”. Espantado por deixar um e-mail de trabalho passar batido, e assombrado pela velocidade da emissora, corri para o computador para checar a caixa de entrada. Quem era Tati? Um pouco antes do telefonema, um amigo confidenciou de maneira debochada, que estava apaixonado por um Felippe Cordeiro. Ele, como se lesse a minha mente sabendo que eu diria estar lisonjeado, tratou de se explicar,”Não é você, é um Felipe, lá do Pará, que também é Cordeiro”. O Felipe em questão é um músico que tem despontado pelo Brasil. Claro que eu já havia me deparado com esse homônimo quando procurei meu nome no Google (aham, e você nunca fez isso). Avisei a Tati que houvera um engano, eu não era músico e muito menos tinha uma gravação agendada. Uma coincidência assim parecia impossível e, muita conversa depois, ela percebeu que quem lhe passou o número havia confundido os dois xarás.

Conheci o primeiro Felipe, sem ser eu mesmo, aos sete anos de idade. Ao ouvir meu nome sair da boca do professor, “Presente”, respondi um pouco distraído. Não era eu. Era o outro. Por culpa do meu P duplo eu nunca seria o primeiro nas listas de presença escolar. Ou seja, além de ter um homônimo (palavra e significado com as quais não era familiarizado na época) ainda era o segundo – e em outros casos, o terceiro ou quarto. Por puro sadismo me aproximei dele. Eu seria Cordeiro ou Lippe, para não confundir. O farsante, para sepultar a minha existência, teve a pachorra de nascer um dia antes de mim, no mesmo ano. Só me recuperei desse trauma depois de mudar de colégio.

Por mais sete ou oito anos, considerei um incômodo encontrar pessoas com o mesmo primeiro nome que eu. Sentia a minha intimidade invadida por um fenômeno extraordinário e quase paranormal. Como se todos aqueles Felipe’s, Filipe’s, Filipi’s, e quaisquer variantes, não existissem num plano terreno, como se fossem entidades e tudo aquilo fosse delírio de um demente.

Quando mais velho, passei a nutrir um interesse muito grande por gêmeos. Não para um ménagé à trois, e sim para entender como seria ter alguém igual a mim, fisicamente e de trejeitos. Nascer e crescer ao lado de um melhor amigo que, além da similaridade física, o compreende por completo me parecia admirável – para não dizer mágico e quase impossível. O único problema é que muitos dos irmãos gêmeos que cruzaram meu caminho eram diferentes em físico e psique. Não eram nuanças. É evidente que eu não gostaria de encontrar nenhum caso relativo como em Gêmeos – Mórbida Semelhança, do diretor David Cronenberg. Porém, não deixava de ser uma decepção.

Naturalmente, após um hiato nesse vício, veio a leitura de “William Wilson”, de Edgar Alan Poe, e afastei-me dos gêmeos nascidos da mesma mãe e contemplei os Doppelgängers. Para quem não conhece o conto, a história gira em torno de dois colegas de classe que são iguais, tanto nos nomes quanto nos trejeitos, e de sua disputa à priori inocente, mais tarde obsessiva, que os persegue por grande parte da vida. Como isso nunca me aconteceu (veja bem que não usei “aconteceria”), o mais próximo que eu queria era um elemento que me fascina muito na literatura borgeana: o duplo. Um encontro comigo mesmo num passado ordinário. Eu, hoje em dia, falando sobre o conto de Poe para meu jovem eu – em “O outro”, do próprio Borges, o jovem Borges lia O Duplo de Dostoiéski ao encontrar o velho Borges. Ou eu jovem me contando os sonhos que tem. Eu velho mordendo o lábio para não acabar com grande parte deles – a decepção deve ser encarada na realidade e não no mundo das ideias – e mantendo a política da boa vizinhança. Sem muita afeição. Uma conversa entre dois conhecidos, falando sobre o passado e que não se arriscam a tornarem-se íntimos. Eles são o mesmo só que um não se recorda e o outro ainda não sabe. Sem invejar ou repudiar a existência do outro – e nela acreditando. Bakhtin se sentiria orgulhoso.

Um outro eu que poderia encontrar seria certamente, para não dizer esquizofrênico, a minha Anima. Na calada da noite ela resolve se materializar e se manifestar. Expurgar-se do meu inconsciente para dizer um oi de verdade e mostrar-se presente e mais consciente que eu mesmo.

Um sujeito pode sugerir que eu enfeite a minha casa inteira com espelhos para conhecer vários eus, mas é aí que a ironia aparece. Eu tenho aversão a espelhos. Considero perturbadora a sentença “Os olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo” do conto “O espelho” de Guimarães Rosa. Ver-me sem precisar de uma cópia, um clone, reflexo ou uma projeção nos moldes d’A invenção de Morel não é o que busco em um outro eu. Nada artificial ou num reflexo – que nada mais é do que uma representação às avessas sobre a minha realidade – e nesse quesito dou preferência à concepção do duplo na literatura e no fantástico, onde ainda posso conversar comigo em pessoa. Soa estranho. Todavia, cessaria um pouco aquela vontade que dá de conversar sozinho durante o dia, numa fila, no meio da rua e nesse minuto.