Poucas vezes na vida, tive controle absoluto sobre as coisas que estavam acontecendo comigo em um presente momento. Os desastres  entre esses instantes são mais marcantes e rendem mais histórias. Lembro, por exemplo, quando era criança e fazia aula de ballet. A professora gritava para girarmos para esquerda e então 10 mini-bailarinas giravam graciosamente para a esquerda enquanto eu ia com a minha segurança embriagada e sem freios para a direita. Consigo contar três traumáticas vezes em que entrei no banheiro masculino por distração. Já me peguei em vários momentos pesquisando sobre sintomas de DDA ou surdez seletiva, sem conseguir concluir porque no meio encontrei um site muito legal que me fez mudar o rumo de tudo. Minha família tinha medo que eu me mudasse para São Paulo e fosse atropelada na Av. Paulista por não saber medir a distância segura dos carros. Não é à toa que eu chamo essa coluna de “Anos-Luz Depois”, pois marca o tempo que a luz viaja por distancias inimagináveis e universos inalcançáveis até que eu consiga me situar. O assunto desse mês não poderia ser qualquer outro que não minha mais recente perda de controle no tempo-espaço.

Resolvi me matricular em um curso de roteiro. Fiz isso porque a) gosto de escrever, b) gosto de histórias, c) a ideia de criar um roteiro, essa tentativa de ordem e sequência de ideias com início, meio e fim, me tranquiliza de forma mágica. Ao fazer a inscrição, fui informada que o curso já tinha começado na semana anterior. Não achei problema. Na primeira aula, era esperado que eu estivesse um pouco mais perdida do que as outras pessoas, seja pelos fatores naturais de estar sempre perdida mesmo, ou por simplesmente estar chegando uma semana depois de todo mundo. Perguntei ao recepcionista onde ficava a minha sala e ele disse algo como “esquerda-direita-poneys-unicórnios-fim-do-corredor-esquimós-flocos-amor-tortas-de-maçã-esquerda”. Guardei só o “esquerda” e desejei pelo melhor.

Chegando na sala, havia cerca de quinze cadeiras formando um círculo. Três alunos sentados em pontos distantes e o professor, presumi, porque tinha cara de professor. Perguntei em alto e bom som para um dos alunos: “Essa é a turma de roteiro?”. Ele sorriu pra mim. Interpretei como um sim. Em seguida, o professor falou: “Oi, vamos começar em uns dez minutos. O trânsito está uma loucura. Deve ter muita gente parada pela cidade.” Dez minutos depois, começávamos o que seria uma das minhas melhores horas em aula.

Tudo que o professor falava fazia um sentido enorme dentro de mim. Gostava de como ele se referia à gente como “escritores”. No início da aula, me entregaram uma matéria sobre o mercado editorial da Companhia das Letras e uma tirinha em espanhol sobre autores e seus respectivos “nós” em romances – o Edgar Allan Poe formava uma forca e o Cortázar um emaranhado sem fim. Achei graça  em tudo. O papo seguiu sobre inícios de romance. O professor separou suas dez aberturas favoritas para analisarmos e me senti como parte daquele universo. (Até já escrevi sobre inícios aqui no Meia.)

O fim desse maravilhoso primeiro ato termina agora, quando o professor começa a pedir para as pessoas lerem os trechos de romance que elas escreveram em suas casas. Ouvi algumas dessas leituras. A luz, que até então estava percorrendo outros universos, chegou até mim novamente e atingiu minha cabeça em cheio: “Oh meu deus, estou assistindo a aula errada. Isso era pra ser um curso de roteiro audiovisual e não literatura.” Virei para a senhora que estava ao meu lado e perguntei: “Isso aqui é aula de que?” Ela, surpresa, disse: “Escrita literária.” É, ferrou. Tentei levantar sem chamar atenção, mas do jeito que eu me movimentei o professor indagou se eu já estava indo embora. Não tive alternativa senão ficar incrivelmente extrovertida/psicótica desenfreada e profanar um discurso.

Disse, “Olha, pessoal. Foi um prazer enorme conhecer cada um de vocês. Vocês são muito talentosos. O futuro da literatura do Brasil está nessa sala. Parabéns. Professor, sua aula é incrível! Quem sabe eu faça esse curso futuramente, mas hoje estou aqui para ser roteirista. Mas roteirista não deixa de ser escritor, né? Então nos vemos por aí, dividindo histórias e coisa e tal.” Saí com risadas ao fundo e histeria externalizada. Toda quarta-feira, esbarro com algum aluno ou com o professor dessa aula e eles são simpáticos comigo.

O que eu disse, apesar de maluco, é verdade. Roteirista não é assim tão diferente de escritor, ou letrista. Estamos todos buscando uma forma de dar utilidade às palavras. A diferença é que um vai ganhar uma edição, diagramação bonita e capa atraente. Outro vai ser cortado por um produtor executivo e interpretado por um diretor, enquanto o último receberá um arranjo para acompanhar.  Talvez nenhum deles fique como o esperado, mas estamos tentando, e boa sorte pra nós. E a próxima vez que eu perder o controle, que seja tão boa quanto essa.