“Um daqueles raros livros que nos fazem lembrar por que amamos ler.”

Este foi o blurb 1 escolhido para encimar o título de O Torreão, o mais recente livro de Jennifer Egan traduzido para o português. Essas frases – que podem aparecer na capa, na quarta capa, nas orelhas, bem como em uma folha especialmente designada para ser entulhada por elas – são cuidadosamente escolhidas para falar diretamente a um público, o que faz pensar: a quem se dirige essa frase? Aos leitores em geral? Será? Ou a pessoas que, por um motivo ou outro, têm perdido a vontade de ler, neste mundo crescentemente atribulado?

Eu creio que seja o segundo grupo, ainda mais se for composto por pessoas que, além do blurb na capa, costumam ler a orelha do livro para ter alguma ideia da sinopse: “Uma baronesa sinistra, um trágico acidente em uma piscina mal-assombrada, um traiçoeiro labirinto subterrâneo…”. Um blurb mais honesto consistiria em algo como “Um daqueles raros livros [de suspense/terror/teor sobrenatural] que nos fazem lembrar por que amamos ler [esse tipo de coisa]”. A Kika reconheceu prontamente possíveis referências a alguns clássicos e identificou O Torreão como um romance gótico: na mosca. E com isso já revela que, se o teu guilty pleasure, caro leitor, se aquilo que te faz “amar ler” consiste em livros românticos, policiais, épicos ou baseados em fatos históricos, tu não vais encontrar isso aqui, não. Desculpe-me se sou o portador de más notícias.

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O Torreão é dividido em três partes, mas poderia perfeitamente ter sido dividido em duas, uma vez que não há substancial mudança de registro entre a primeira e a segunda delas. Soa como se a autora visasse dar uma maior importância ao expediente traumático que há no final da primeira. Ou alertar o leitor de que a noção de realidade será mais efetivamente bagunçada a partir do nono capítulo, começo da segunda parte. Eu teria apreciado mais uma gradação sutil – isto é, não ter sido avisado da importância do momento, algo suficientemente explicitado no capítulo –, mas admito que aquilo deve auxiliar na fruição do leitor comum – aquele que precisa de alguma lembrança da razão pela qual ama ler.

Os capítulos curtos – algo que sempre ajuda a leitura a fluir – alternam-se entre a primeira pessoa – quando a narrativa mostra quem a constrói (no caso, Ray, um presidiário que participa de uma oficina de escrita criativa) – e a terceira pessoa – que constitui a maior parte do romance e narra história de Danny visitando um castelo europeu que se tornará em um atípico hotel.

Convenhamos: Egan consegue conectar de jeito orgânico – algumas ligações são mais sutis que outras – a vida do escritor com a narrativa que ele produz. Quanto a isso, a verdade é que dá gosto de ler: a autora passeia confortavelmente entre as duas camadas da narrativa. Dá para fazer, inclusive, uma crítica biográfica: “este romance é representativo do homem que o escreveu, suas condições de vida etc.”.

Vamos a um exemplo, ainda nas primeiras páginas do romance. Uma hora, a professora da oficina diz: “não vou desperdiçar o tempo de todo mundo com babaquices como disputas de poder” – explicitando o que provavelmente estava por trás do exercício criativo de seu aluno. Parágrafos depois, lição aprendida por Ray (“não escrever mais contos eróticos com a professora como personagem”), nos deparamos com o seguinte trecho:

A maior mudança de todas não era física: Howard tinha poder. E poder era uma coisa que Danny compreendia muito bem – era uma das muitas habilidades que havia adquirido em Nova York, depois de anos de estudo, treinamento e prática, habilidades que se combinavam para formar um currículo tão especializado que tinha de ser redigido com tinta invisível, de modo que quando seu pai (por exemplo) desse uma espiada, tudo o que veria seria uma folha em branco. Danny era capaz de entrar numa sala e saber logo quem tinha poder, assim como as pessoas sabem só pela sensação do ar se vai nevar ou não. Caso a pessoa que tivesse poder não estivesse dentro da sala, Danny sabia disso também e, quando ela aparecia, Danny em geral era capaz de identifica-la antes mesmo que ela abrisse a boca – às vezes até antes de passar totalmente pela porta. Tudo estava na maneira como os outros na sala reagiam.

Há um limite para a galhofa. Se Ray não havia pensado em relações de poder ao escrever um conto erótico com a professora, ele certamente ficou com aquilo na cabeça depois do sermão dela. E aquilo se refletiu na composição de Danny.

Por falar em Danny, uma cena em especial chamou-me a atenção. Uma cena que me lembrou do capítulo escrito em linguagem de slides em A visita cruel do tempo, que discorre, entre outras coisas, sobre pausas musicais. Nesse sentido, a cena pareceu-me algo preciosa.

Danny prestou atenção e não ouviu nada, mas era uma espécie de nada diferente daquela a que estava acostumado. A maioria dos silêncios é feito uma pausa, uma área branca no meio do barulho rotineiro, mas aquele silêncio era denso, como só se ouve em Nova York logo depois de uma nevasca. Era ainda mais silencioso do que isso.

Alternando momentos de tensão (muita tensão) e de enfado (muito enfado), chegamos à terceira parte. E nos damos conta de sua quase que absoluta falta de necessidade. Se o livro acabasse 31 páginas antes, certamente seria muito mais esquisito e misterioso e intrigante e “de onde veio aquilo que me bateu?”. A última parte, ainda que não subverta totalmente o estranhamento das duas anteriores, serve meio que para “relaxar” o leitor; para que ele não saia da experiência literária com algo muito desconfortável em sua cabeça e em suas noções sobre a realidade. Sim, há novas perguntas suscitadas, não é uma panaceia total. Mas o desenvolvimento maior da história do personagem que monopoliza esse pedaço da história nunca deixa de soar como um remendo – acrescido ao livro, mas claramente feito com outro tipo de tecido.

Ao menos, já próximo das últimas linhas, o tom poético torna a leitura da terceira parte menos decepcionante. E, se 31 páginas foram necessárias para aquela última frase, talvez elas tenha valido realmente a pena. Ela é bem boa e quase faz com que se nivele o livro por cima. Quase.

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É triste pensar no mundo apenas em termos de progresso, evolução. Por mais que aprendamos com nossos erros, isso não significa que depois consigamos fazer algo melhor.

Não vejo como não pensar em O Torreão em termos de progresso. O livro é bom, mas claramente uma obra menor de Jennifer Egan. Ainda que tenha sido lançado pela Intrínseca depois de A visita cruel do tempo, o fato é que o livro é anterior a este. E se vê: é um livro bom, mas que não surpreende em questões como criatividade e domínio da narrativa, para quem já leu o outro. Decepciona bastante, para falar a verdade. Fica a dica: se você leu antes o romance (volume de contos encadeados?) ganhador do Pulitzer de Ficção e está a fim embarcar nesse livro, tente baixar suas expectativas. Se baixá-las for fácil, leve o exercício um pouco adiante: baixe-as muito, tanto quanto puder.

Em outros tempos eu diria “já deu de Jennifer Egan, não vale a pena persistir lendo coisas dela”. Mas o fato é que o conto Caixa preta deu o que falar. Sérgio Rodrigues elogiou. Ian McEwan elogiou. Ou seja: darei uma chance a este. Mais pelo tamanho e pela facilidade de acesso (foi publicado no Twitter da editora) do que por outra coisa. E antes de me arriscar por outras obras dela, vou tentar me certificar previamente de que a trama tem algum potencial de me cativar.

E, lógico, desconsiderar totalmente os blurbs. Não sei a razão de tê-los lido. “Jennifer Egan é uma romancista impossível de classificar”: balela. E o “brilhantismo” passou longe também. As páginas não são exatamente “vertiginosamente inventivas” e o livro não é exatamente “memorável”, “deslumbrante”, “inteligente, desafiador e empolgante”. E por mais que adore conjecturas do tipo “se tal livro e tal livro se casassem, este seria o seu filho”, façam o favor de manter Franz Kafka e Lewis Carroll bem distantes de suas comparações com o romance da Egan.

Não. É bom. Razoável. Regular. E só. “E isso não é suficiente?”, tu me perguntas. E eu respondo que começo a pensar que não.

  1. “Publisher’s summary and recommendation of a book, printed usually on the front flap of the book’s dust jacket, or in an advertisement or catalog”, segundo o Business Dictionary. http://www.businessdictionary.com/definition/blurb.html