Para que algo seja chamado de precioso, deve ser valioso – seja por sua beleza seja por sua raridade (a definição é do Houaiss). Ultimamente, tenho usado o adjetivo frequentemente para qualificar alguns dos livros fininhos que leio, que se comprovaram boas ou excelentes leituras – grande parte deles editada pela Cosac Naify. Livros infantis de formatos variados (como o Estava escuro e estranhamente calmo, de Einar Turtowski), contos (Pawana, de J.M.G Le Clézio), livros de bolso (os da Coleção Portátil são um bom exemplo) e romances (como Bonsai, de Alejandro Zambra, e A contadora de filmes, de Hernán Rivera Letelier) costumam preencher os dois requisitos de preciosidade: as edições são bem cuidadas e enchem os olhos (beleza), além de, em poucas páginas (que aparentam, erroneamente, uma fragilidade), descortinarem um mundo para o leitor (raridade).

O homem corria demais para o meu gosto e buzinava com fúria.

Viajei ao Chile e à Europa com a narrativa de Zambra e conheci a vida dos mineiros de um paupérrimo vilarejo latino-americano com a de Letelier. Como nesses livros preciosos, pelo jeito, “viajar é preciso”, não tive problemas em pegar carona no táxi de Antonio Tabucchi. Noturno indiano levou-me, adivinha só, para a Índia.

– Ouça, a Índia é misteriosa por definição, mas a arte do enigma não é o meu forte, me poupe de esforços inúteis.

Está bem, então. Na história, acompanhamos um narrador em busca de um amigo que não vê há anos, seguindo a pista (fornecida numa carta) de que ele estaria em Bombaim. Mas ele tanto pode estar em um dos milhões de recantos dessa cidade como já ter saído dela; pode tanto estar muito bem de saúde como sendo tratado entre os moribundos de um hospital indiano (a morte é outra opção que não pode ser descartada); pode tanto ser encontrado casualmente numa esquina como pode estar com um nome falso por seu envolvimento com uma misteriosa organização.

O “Bairro das Gaiolas” era muito pior do que eu imaginava. Conhecia-o por certas fotos de um fotógrafo célebre e pensei estar preparado para a miséria humana, mas as fotografias encerram o visível num retângulo. O visível sem molduras é sempre outra coisa. E depois, aquele visível tinha um cheiro bastante forte. Ou melhor, muitos cheiros.

Os contrastes do país, que estiveram sob os holofotes com o filme ganhador do Oscar Quem quer ser um milionário?, são bem demarcados na obra de Tabucchi. O narrador se hospeda em um local diferente a cada dia: ora em uma espelunca, ora no hotel mais suntuoso de Bombaim – “o Taj não é um hotel: com seus oitocentos quartos, é uma cidade dentro da cidade”. A abordagem realista dos “percursos incongruentes” do narrador é ressaltada com a indicação prévia de uma lista de lugares citados no livro, que podem ou não ainda existir.

– O senhor é religioso? – perguntei.
– Não, sou ateu. Ser ateu é a pior maldição, na Índia.

Sei que deve ser possível escrever um romance ambientado nesse país sem que temas místicos e religiosos sejam citados – assim como, dizem, não há camelos em todo o Alcorão –, mas a ausência deles seria notada prontamente por quem já teve um mínimo de contato com a cultura indiana – seja por meio de filmes, documentários, reportagens ou romances. A obra de Antônio Tabucchi não decepciona nesse sentido e essa é a tônica da segunda parte. Além do médico ateu da citação, o leitor também acompanha passagens com religiosos jainistas, a Theosophical Society, sonhos estranhos e um adivinho.

É capaz de me dizer o que é que está dentro da moldura?

Por fim, na terceira parte, há algo levemente decepcionante. Não, o nível de escrita não piora nem o mistério é totalmente desvelado com uma solução decepcionante. A questão é que o escritor lança mão de um artifício que, se em 1984 ainda podia ter algo de “inovação”, hoje não passa de um expediente utilizado em demasia, ao menos em livros com ambição de serem considerados “alta literatura” – ele parece até constituir a estratégia número 1 ensinada na aula de “como terminar um livro” de algumas oficinas literárias.

É errôneo julgar um livro pelo seu final, até porque (1) muitos críticos sequer se dão ao trabalho de ler um livro na íntegra mesmo (alguns só chegam a folheá-lo) e (2) isso implica esquecer as dezenas de páginas de boa literatura que possivelmente o precederam. Mas o fato é de que há uma espécie de costume de considerar que, no que concerne aos livros, “a última impressão é a que fica”. O pior dessa discussão é que Noturno indiano não apresenta um final desastroso, péssimo ou sequer ruinzinho.

É um bom final: bem escrito, com pequenas surpresas, além da inserção de pequenos mistérios extras para o leitor. Mas que podia ser muito bom, ah, ele podia.