Não estou lá, filme de 2008 dirigido por Todd Haynes, exibe quase todas as facetas de Bob Dylan. Desde o garoto que adora folk, passando pelo período religioso, alçando uma transgressão pelo uso de drogas e da guitarra elétrica; até sua fase reclusa. Facetas é uma palavra totalmente errônea, leia-se aí personalidade ou personagem e, até mesmo, outro Bob Dylan – o que permanece é o nome, de resto parece outro ser humano. Sim, o cantor em seus mais de quarenta anos de carreira se recriou do zero. A fita com Cate Blanchet, Heath Ledger e Cristian Bale – isso só para citar uns poucos nomes – na pele de algum Dylan, mostra visualmente as mudanças drásticas e simbólicas na carreira do cantor. É na comparação e nos contrastes com o cantor que Ar de Dylan, último romance lançado por Enrique Vila-Matas, se guia para falar de mutações e autenticidades.

Um escritor de meia-idade, que escreveu muitos livros considerados sempre o mesmo livro, e o jovem Vilnius Lancaster, publicitário baldado e cineasta sem sucesso que tem como êxitos ser uma cópia física perfeita de Bob Dylan e filho do grande escritor Julian Lancaster; se conhecem durante um congresso sobre o tema fracasso na Suíça. Vilnius chega ao evento com o intuito de partilhar um conto de sua autoria sobre os acontecimentos dos últimos seis dias, após a morte de seu pai, e sobre as inserções de memórias e referências a Hamlet que o defunto faz em sua mente. Após a encenação fadada e planejada ao fracasso, o escritor-narrador se vê interessado e envolvido na história do filho de seu maior rival literário, e em seu relato, o “Teatro da Verdade”, que desencadeia uma narrativa detetivesca dentro do romance.

A começar pela pura obsessão de Vilnius por uma frase do filme Três camaradas (“Quando anoitece, precisamos sempre de alguém”) que acredita ter sido escrita por F. Scott Fitzgerald. Essa obsessão pela autoria da sentença o leva até Hollywood, onde o mundo cinematográfico lhe parece um fracasso, e depois de volta a Barcelona com uma nova – talvez – visão do mundo das artes.

Excêntricos personagens aparecem no caminho, como Laura Verás, mãe de Vilnius que, além de odiar o próprio filho e demonstrar total desprezo por ele, é conhecida como uma víbora que devora todos à sua volta. Débora Zimmermann, amante de Julian, aparece como redentora e ajudante de Vilnius numa arte que ainda não existe, enquanto Claudio Aristides Maxwell, amante de Laura, levanta suspeitas devido a sua elegância plastificada. Todos eles ligados de uma maneira ou de outra a essa busca que ora soa inverossímil – e o narrador afirma acreditar em tudo por ser exageradamente fantasioso.

A jornada de Vilnius é tão inacreditável que em dado momento alterna de uma simples busca para uma teoria da conspiração, onde seu pai foi assassinado por causa de uma autobiografia não finalizada. Como não há vestígios desse manuscrito, resta acessar as lembranças do falecido, através das infiltrações na mente de Vilnius. Além dos sussurros constantes “Hamlet”, algumas vontades do morto passam a incomodar o filho, como quando o personagem visita a mãe e um ardor sexual acende dentro dele ao notar a belíssima mulher que ela é. Outra infiltração hilária, em forma de recordação da juventude, é a mania do pai que colocava dentadura na bunda para retirar botões de bancos de carro e ônibus.

Por todas as páginas de Ar de Dylan existem essas heranças de memórias. Grande parte do que é narrado vem da voz do escritor inominado e da história que vivenciou com Vilnius, que é interrompido pelos teatros e ações do filho de Julian Lancastre, que por sua vez é conduzido pela sua condição extraordinária, quiçá metafísica, das memórias adquiridas do pai.

Entre interrupções e aspirações filosóficas do narrador, Vila-Matas mostra seu potencial em intercalar referências obscuras e populares. Intromissões verborrágicas e anedotas saltam de Knut Hamsun a Stephen King em um instante, e sem limitar-se somente à literatura, cinema, música e dança também participam. Como a história principal toma proporções um tanto quanto absurdas, beirando até uma cena teatral entre um sequestro, um estupro e a revelação de um assassinato, Vila-Matas levanta dúvidas aos leitores quando mistura personagens reais à ficção que escreve.

– Não faço nada, mas sou indispensável!

Fazendo jus à introdução sobre Não estou lá – citado dentro do romance por Vila-Matas -, Vilnius, como um duplo de Dylan, contrasta com o cantor por seguir o lema de manter-se autêntico a si mesmo, o que causa gargalhadas ao pai, um escritor conhecido justamente por surpreender seus leitores com narradores que diferem entre si e histórias que nunca se repetem (o que também cria uma ponte com o narrador), – e com a lenda de que está sempre em mutação – sem mudar sua essência ou aparência, o que o torna apenas uma cópia visual sem o mesmo conteúdo. O ar de Dylan não tira Vilnius de seu lugar comum, de desocupado e criando mirabolantes ideias que só podem durar um dia – de acordo com sua própria filosofia infraleve.

Ar de Dylan não tem tanta força pela sua história, entretanto em narrativa é formidável, e em sua última parte soe um pouco tola e de grau um tanto quanto onanista-existencial-exagerado-e-verborrágico. Contudo, os temas tangentes: fantasmas e sombras deixados pelos pais, o tempo e espaço da literatura (e das artes em geral) na modernidade, a irresponsabilidade, o medo da morte, a batalha entre trabalho árduo e o campo das ideias são tão bem explorados que merecem destaque e atenção do leitor. Enrique Vila-Matas revira toda a meta-literatura que o consagrou, e creio que esse seja um de seus livros mais sinceros quando o assunto é pensar literatura: da criação até sua negação e desconstrução.