Dizia Julia Kristeva, embasada pelo conceito de dialogismo de Mikhail Bakhtin, que “todo texto é um mosaico de citações”. Atrevo-me a dizer que, no âmbito da criação literária, a escolha das citações que compõem esse mosaico deve ser feita com paciência, com cuidado, pela adoção de métodos que possam remeter ao processo de cultivo do bonsai.  É assim que eu vejo o romance (que, para mim, é uma novela, mas não vamos começar uma discussão sobre gênero, se o autor chamou a sua obra de romance, vamos tomar a classificação dele como lente de análise) de estreia do chileno Alejandro Zambra.

Em poesia, Zambra já publicou dois livros. Sobre a obra poética do chileno, sei apenas o nome dos livros, que li no fim da edição de Bonsai, que foi publicado, no Brasil, pela editora Cosac Naify. O meu interesse em ler a estreia do chileno na prosa, se deu por meio de dois processos. Inicialmente, quando vi, pelo twitter da editora, a publicação do livro, fui atrás da sinopse, e achei bem interessante. Posteriormente, quando a Anica publicou uma resenha sobre o livro no blog do Meia Palavra, fiquei mais do que interessada. E quando manifestei meu interesse, a Anica decidiu me presentear com o livro, o que fez  com que a traça aqui  ficasse muito feliz.

Não sei se é coisa de quem é da área de Letras, mas sempre que vejo livros que, de certa forma, costumam homenagear a literatura, em um exercício metaliterário, eu tenho vontade de conferir. Acho gostoso conhecer outras visões sobre obras que já li. Por exemplo, quando os personagens principais de Bonsai reencenam os momentos sexuais protagonizados por Emma, em “Madame Bovary”, é impossível não sentir que a personagem de Flaubert, no romance de Zambra, ganha uma outra roupagem.

É como se, ao falar sobre outras obras, o livro se transformasse em um fórum de discussões – mas nos moldes de um tribunal –, e os leitores formassem o júri. As  técnicas narrativas utilizadas para o desenvolvimento do enredo seriam, ao mesmo tempo, o promotor e o advogado de defesa, responsáveis por convencerem o júri da qualidade da obra. E o juiz… o juiz é a própria obra, que volta para si em um exercício metatextual. Acredito que Alejandro Zambra com Bonsai, em noventa e uma páginas divididas em cinco capítulos, consiga fazer isso.

Bonsai é uma livro que fala sobre  o fim da história de amor entre duas pessoas – Julio e Emilia – que se conheceram enquanto estudavam literatura. Não, é um livro que fala sobre a dor. Não, é um livro que fala sobre bonsai. Não, é um livro que fala sobre o processo de escrita e sobre a literatura, enfim. Não, é um livro sobre tudo isso, e sobre nada.

Sabe-se que o “Bonsai é uma réplica de uma árvore maior, encontrada  na natureza”(p. 80). Ele é uma miniatura dessa árvore. Acho que a ideia do romance de Zambra talvez passe por aí. O bonsai pode servir como uma metonímia para uma árvore maior. O bonsai que representa o amor de Emilia e Julio é só uma projeção do amor propriamente dito. Ou seria o amor algo pequeno, como o bonsai, e as árvores gigantescas que vemos só são imensas por terem o privilégio de refletirem o pequeno Bonsai, como em um exercício semelhante ao que faz com que as sombras ganhem proporções gigantescas? Ou elas extravasam a grandeza de detalhes que existe no bonsai?

Sempre fui uma defensora da ideia de que mais do que “o que se conta”, importa o “como se conta”. Mas isso não impede que eu reclame absurdamente por causa de spoilers. Por isso, fiquei perplexa quando li, no começo de Bonsai: “No final ela morre e ele fica sozinho” (p. 10). Continuei a leitura com o intuito de comprovar isso. E a minha concepção é a de que, na verdade, ele, Julio, sempre esteve sozinho. Acho que as mulheres que passaram por sua vida foram como vultos, mas, na realidade, não chegaram a existir concretamente. Não estou sugerindo que elas tenham sido frutos da imaginação de Julio, estou dizendo que elas passaram pela vida dele, mas não permaneceram, efetivamente, a não ser por meio da inscrição literária, que as “aprisiona” no romance de Zambra.

Falar sobre o início do relacionamento de Julio com Emilia é fácil. Início de relacionamento é uma etapa deliciosa, na qual nos lançamos em direção ao outro, procurando algo que possa nos ligar, estabelecer uma conexão. E quando encontramos esse algo, julgamos ser um evento cósmico. Nessa empreitada, Julio e Emilia compartilharam leituras, mentiras (os dois disseram ter lido Proust, mas isso não tinha realmente acontecido) e a cama. A literatura, no caso de Emília e Julio, foi o fio a partir do qual essa conexão foi tecida, e foi, também, o prenúncio do fim do relacionamento deles.

Gosto do caráter ambíguo da literatura, no romance de Zambra, que tal qual uma flor, encanta pela sua beleza e pelo seu perfume, mas causa dor com seus espinhos. Isso nos remete à epígrafe do romance, na qual o autor cita Gonzalo Millán: “a dor se talha e se detalha”. O ato de talhar faz alusão ao próprio processo de cultivo do bonsai, no qual se poda os galhos, de maneira organizada, ou seja, detalhada. Esse processo, por sua vez, recupera o próprio ato da criação literária, no qual se poda os excessos, fazendo com que permaneça uma escrita enxuta: “Cuidar de um Bonsai é como escrever, pensa Julio. Escrever é como cuidar de um Bonsai, pensa Julio” (pg 81).

A dialética do talhar e detalhar é retomada no segundo capítulo do romance, intitulado “Tantalia”. O capítulo faz referência ao conto homônimo do argentino Macedónio Fernández – lido por Julio e Emilia – , no qual um casal que adquiriu uma plantinha se deu conta de que quando a planta morresse, o relacionamento deles acabaria. Então, o casal decidiu fazer com que a plantinha se perdesse no meio de tantas outras, para que eles não presenciassem a morte dela, o que não evitou o fim do relacionamento, pois eles ficaram inconsoláveis por terem perdido a planta que metaforizava o amor que os unia.

A transposição dessa história para a de Julio e Emilia acontece de maneira nada sutil. Ao terminarem a leitura de “Tantalia”, eles se deram conta de que a história que viveram juntos estava chegando ao fim. Tentaram prolongar o fim, mas sabiam que não teriam forças para manter o relacionamento por muito tempo. É como se a leitura do conto provocasse uma fissura, talhasse a “quebra” de algo que fazia com que os dois permanecessem juntos. E saber que o fim estava próximo não significava que eles pudessem detê-lo, como fica bem claro no momento em que os dois estavam lendo “No cmaminho de Swann” – ainda mantendo em segredo o fato de que não tinham lido “Em busca do tempo perdido”, tanto que afirmavam estar compartilhando uma releitura – e pararam na seguinte parte da página 372:

Não é porque se sabe de uma coisa que se pode impedi-la; mas temos pelo menos as coisas que averiguamos, se não entre as mãos, ao menos no pensamento, e ali estão à nossa disposição, o que nos inspira a ilusão de exercer sobre elas uma espécie de domínio.

A citação em questão denota que Julio e Emilia tinham consciência de que não poderiam evitar o fim, entretanto, enquanto conseguiram, tentaram manter a ilusão de que tinham controle sobre isso.

E, nesse ponto, a eminência  do inevitável fim,  acho interessante destacar o jogo que se pode estabelecer entre  as palavras “talha”, tantalia” e “detalha”. Jogo  que, para mim, alude a própria constituição do romance de Zambra: ele nos conta como começou o relacionamento entre Julio  e Emilia, de maneira detalhada; depois, nos conta como esse romance terminou, e aqui temos “Tantalia” como um “gatilho” e como uma talha, um corte. A partir desse corte, isto é, o fim do relacionamento, os protagonistas do romance seguem  rumos diferentes. Emilia vai para a Espanha, onde morre. Julio permanece no Chile,  se envolve com Maria e, por meio de uma suposta escrita – ele conta a Maria que começara a trabalhar datilografando o romance do escritor Gazmuri; romance que é, ao mesmo tempo, uma junção de “Tantália”, da história de Julio e Emilia, e da história de muitos outros casais anônimos –, tenta ressignificar o seu relacionamento com Emilia ao mesmo tempo em que procura racionalizar a sua situação com Maria.

Quando terminei de ler Bonsai, retomei minha posição de jurada da obra, mas não para julgar a leitura que Alejandro Zambra faz de outras obras literárias, mas sim para refletir sobre o estatuto da verdade e da mentira na literatura. Não me lancei em um julgamento maniqueísta, antes optei por um julgamento descritivo, digressivo. Aproveitei-me do fato de que o romance começa com o fim do relacionamento de Julio e Emilia para tentar situar onde começa e onde termina a verdade de Julio, a verdade de Emilia – que não “fala”, é falada por Julio – , e a verdade de Alejandro Zambra. Depois de três meses da leitura de Bonsai, ainda me pego pensando nos paradigmas da verdade que a leitura da obra me apresentou, mas as (in)conclusões a que chego só são passíveis de fazerem sentido acompanhadas por uma taça de vinho.

Sobre a autora: Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no Twitter como @cleoamachado