As relações amorosas são cercadas de toda a sorte de complicações, venturas e tragédias. O amor ganhou na literatura as mais diversas expressões e roupagens, sendo tanto o ato sublime supremo – ao qual os românticos tanto aludem -, o “cão dos diabos” – como o descreveu Bukowski – e uma trama complexa de idas e vindas, avanços e retrocessos – conforme o tratou Kundera. Precisamente esse rico sentimento que assume o lugar no palco do livro de Javier Marías, não necessariamente o amor no sentido clássico, mas o enamoramento, uma experiência um pouco diferente.

Os enamoramentos possui uma trama que se complexifica em seus meandros e implicações conforme a história avança. O foco narrativo cabe a Maria Dolz, mulher que trabalha em uma editora em Madri e que cultiva um ritual matinal: vai ao mesmo café e observa de longe um casal, Miguel e Luisa Desvern, ao qual apelidou “casal perfeito”. Maria fantasia o dia a dia do casal para além daquele café, imaginando o mundo de felicidades em que devem viver os dois; mas somente vem a travar contato com esse mundo quando um de seus sustentáculos cai por terra: quando Miguel é assassinado a facadas. Tal é a situação em que Os enamoramentos se inicia, precisamente nesse ponto de ruptura.

Numa desconcertante constatação, Maria percebe que somente após a morte de Miguel – e mesmo por conta dela – foi que ela veio a entrar, ainda que timidamente, na vida de Luisa, fazendo-se por ela conhecer. Na mesma ocasião foi que Maria conheceu Díaz-Varella, amigo do casal que desempenha na trama um papel-chave. Os dois se envolvem num tórrido affair apesar da brevidade do contato inicial, affair esse que, por um acaso, joga Maria numa trama muito mais complexa e profunda, que existe por debaixo daquela tragédia a que ela assistiu um pouco de perto e um pouco de longe.

Primeiro como testemunha externa e depois como pessoa envolvida na trama que se estabelece após a morte, Maria é nossos olhos e ouvidos em Os enamoramentos. É a partir de seus comentários e de sua narrativa que temos acesso aos acontecimentos, e, tendo ela tomado parte no desenrolar dos fatos, sabemos se tratar de um relato cujo autor real – Marías – compilou com toda a cautela que compete à primeira pessoa.

A trama é bem arquitetada, e foi narrada com maestria por Marías: não se trata de um livro difícil, de escrita intrincada ou rebuscada – embora pareça extensa às vezes -, mas de um livro que demanda atenção. Não porque se trata de um livro detetivesco, de resolução de um mistério, mas sim porque ao passo que a trama central vai se desenvolvendo, outras questões vão emergindo e sendo processadas virtualmente, nas entrelinhas ou, como preferem alguns, no background da história.

Maria se apaixona, ou melhor, se enamora, por Díaz-Varella, cuja personalidade, de solteirão convicto, prenuncia a falta de estabilidade ou de futuro no affair. Luisa, a viúva, também é uma peça nesse jogo, constituindo um ponto de referência para ambos, pelas possibilidades que sustenta, amorosas ou não. O polígono das relações vai se tornando mais e mais complexo conforme um elemento crucial do passado assoma o presente: o falecido Desvern.

Foi sua morte que propiciou o arranjo de relações no qual todo o conflito central do livro se desenrola. É a morte dele, inclusive, que estabelece a rotura dos dois tempos e, consequentemente, dos dois sistemas de relações: uma com e outra sem Maria Dolz. Precisamente por essa condição peculiar é que Marías alude ao romance de Balzac de 1832, O coronel Chabert. A volta do coronel à vida no romance passado existe em paralelo com o ethos criado pela morte de Desvern. O mais desconcertante é que, apesar dessa constatação cruenta – quiçá dolorosa -, essa é a realidade em que eles, contentes ou não, passam a viver.

Marías orquestra a narrativa de modo a desenovelar os conflitos gradativamente. As difíceis constatações que vão pouco a pouco se revelando nos detalhes mais banais (o passar do tempo, o “seguir em frente” da viúva, o que Maria e Luísa representam para Díaz-Varella, o encaminhamento das relações etc.) formam não um triângulo amoroso, mas um polígono, ainda que um de seus lados seja encarnado pelo falecido Desvern.

A peculiar trama criada por Marías tem assim os ingredientes de uma obra muito interessante, atestado do talento da cadência narrativa do autor, que conduz o leitor pela mão apesar das armadilhas dos lugares-comuns sobre o amor. Enamorar-se, portanto, aparenta ser uma experiência mais transcendente e intensa que o amor, embora seja, comumente, menos estável. Os casais-possibilidades a rondar as páginas do livro – Maria e Díaz-Varella, Díaz-Varella e Luisa, Luisa e Desvern – são todas facetas de enamoramentos distintos e, consequentemente, de concepções de amor também distintas.

Creio que Os enamoramentos pode ser considerado um livro de amor, mas virtualmente. Apesar de sua carapaça enganadora, cheia de circunvoluções literárias, o livro trata do amor, mas de um ponto de vista diferente, ora perturbador, ora realista, ora carnal, ora afetivo, ora sentimental, ora visceral; sendo todas elas facetas possíveis e desconcertantes desse misterioso sentimento.